Esta monografia versa sobre os quatro seminários
apresentados por Jung em 1932 nos encontros que realizava no Clube de
Psicologia, em Zurique. Nesses seminários, intitulados “A Interpretação
Psicológica do Kundalini Yoga”, Jung abordou o simbolismo do sistema de chakras
do Kundalini Yoga, entendendo-o como uma espécie de intuição da consciência
coletiva oriental sobre a existência e o funcionamento do sistema psíquico. Ou
seja, Jung enxerga no Kundalini Yoga uma intuição de sua própria teoria, e no
despertar da kundalini, o iniciar do processo de individuação. Jung discorre
sobre esse processo (do despertar da kundalini), amplificando seus símbolos
através de mitos e imagens.
No presente trabalho, busco fazer uma releitura crítica dos
pensamentos de Jung a respeito desse tema, com o intuito de renová-los e
reposicioná-los dentro de uma perspectiva atual.
Introdução
Há cinco anos venho intensificando meu contato com o
Yoga e, muitas vezes, fiquei impressionada com as correlações que poderia fazer
com a Psicologia Analítica. Permaneci circundando o tema por muito tempo, sem
conseguir encontrar uma ponta que pudesse desfiar para traçar paralelos com os
estudos de Jung a respeito do Yoga. Finalmente, vencida pelo cansaço, desisti
de me ocupar desta questão, e só voltei a pensar nela após uma viagem de 40
dias à Índia. Através do contato impactante com este país, pude experienciar o
quanto o caldo cultural atua na formação do ser, na interpretação das
experiências vividas, no estabelecimento dos referenciais de si mesmo e do
mundo.
Seria então possível tentar estabelecer pontes entre uma
forma ocidental e uma oriental de enxergar o ser humano?
Em vários momentos, Jung pergunta se deveríamos nos
aprofundar nas técnicas e conhecimentos estrangeiros a nós, ou se o mais
eficiente seria nos concentrarmos em nossos próprios sistemas de crenças e de
conhecimento. Para ele, ao nos desenvolvermos psiquicamente com referências
ambientais, culturais, religiosas, familiares etc. relacionadas ao Ocidente,
enraizamo-nos em solo ocidental e, assim, não seríamos capazes de assimilar, e
de sermos transformados de fato, pelas verdades do Oriente, e vice-versa. ?
Tal questionamento se manteve presente em muitas obras de
Jung a respeito do Oriente. Ao longo deste trabalho, cito algumas delas.
Durante minha estadia na Índia fui fortemente tocada pelo
estrangeiro, pelo outro estranho a mim; e desta forma, pude compreender melhor
as reflexões de Jung a respeito de se entregar, ou de ser absorvido, por um
sistema cultural diferente.
Se realizada de forma inconsciente, essa imersão em outra
cultura poderia levar, na concepção de Jung, a consequências desastrosas para o
corpo e/ou psique. Em suas memórias (Jung, 1964), comentou o caso de seu amigo
Richard Wilhelm, que, ainda jovem, imergiu na cultura chinesa, sendo totalmente
impregnado pelo ponto de vista oriental. Quando retornou à Europa, Wilhelm
voltou a sentir as necessidades do espírito europeu, o que lhe gerou um
conflito psíquico grave, que Jung associou ao seu falecimento anos depois:
"...Essa mudança de Wilhelm e sua reassimilação do Ocidente pareceram-me um pouco irrefletidas e, portanto, perigosas. Temia que ele se encaminhasse para um estado de conflito consigo mesmo. Ao que me parecia, tratava-se de uma assimilação passiva, isto é, ele havia sucumbido à influência do meio; havia, pois, o risco de um conflito relativamente inconsciente, de um choque entre a alma Ocidental e a Oriental. Ocorrendo um processo desse tipo, sem que haja uma confrontação consciente profunda, há o risco de um conflito inconsciente que pode também afetar gravemente a saúde do corpo..."
(Jung, 1964, p. 328)
Da mesma forma, antropólogos ou profissionais de saúde mental que trabalham com
psiquiatria étnica reconhecem o quanto pode ser desestruturante o choque entre
sistemas culturais diferentes. Há relatos de pessoas (brancos) que, ao
permanecerem por longos períodos em tribos indígenas, precisaram de socorro
médico por sucumbir a uma vivência paranóica. Provavelmente, a experiência
indígena com seus espíritos e rituais, fragilizou o sistema egóico desses
indivíduos, que não é adaptado a essa forma de realidade. De modo inverso,
sabe-se da desestabilização que o álcool, introduzido aos índios de uma forma
não ritualística pelo homem branco, promoveu na estrutura da sociedade tribal
indígena.
Observando-se então, a complexidade de se aventurar em outro continente,
retorno às minhas próprias reflexões sobre os indianos. Eles se diferenciam de
nós (ocidentais) em muitas questões; no tocante à forma de se vestir, de comer,
de se expressar, de reagir, de relacionar-se com o humano e com o divino, com a
realidade e a fantasia. Até mesmo sua linguagem corporal é diferente; mexem a
cabeça com bastante frequência, num movimento regular de translação lateral.
Não tenho certeza do significado de tal gesto, mas transmite uma tentativa de
cooperação, podendo dizer sim, não ou talvez. Aliás, essa cooperação, essa
abertura para o outro desconhecido, mesmo que, muitas vezes, com o intuito de
obter vantagens, é evidentemente oposta à atitude ocidental, fechada em relação
a esse outro.
As reações dos indianos, suas respostas, sua forma de viver a vida são tão
diferentes das minhas e das pessoas com quem convivo que, como médica, comecei
a formular hipóteses sobre possíveis diferenças biológicas. Será que com
estímulos tão diversos dos nossos, seus cérebros também não podem funcionar, em
níveis mais sutis, de uma forma diferente?
Sabe-se que após o nascimento,
o cérebro ainda não está inteiramente formado, tem apenas um terço do volume
que alcançará um dia, e a comunicação neuronal, que se faz do ponto de vista
anatômico via sinapses (estruturas que conectam axônios e dendritos formando
uma rede neuronal), também se encontra em desenvolvimento (Kandel, 2001). Será
que este desenvolvimento não poderia se orientar de forma diferente,
privilegiando ou negligenciando outros grupos neuronais? Será que análises do
funcionamento cerebral, com técnicas de mapeamento por meio de ressonâncias
magnéticas funcionais e testagens neuropsicológicas.
Tais especulações médicas e técnicas invadiram meus pensamentos quando ainda
estava na Índia, e as compartilho aqui para exemplificar características do
pensamento ocidental. De um modo geral, nos parece mais natural e reconfortante
acreditar e incorporar o novo quando podemos explicá-lo no “mundo concreto”.
Assim, se alguns dos caminhos neuronais dos orientais fossem diferentes dos
nossos, como uma técnica deles poderia “caber” em nós? não apresentariam
padrões diferentes daqueles encontrados entre possíveis voluntários ocidentais?
Tais especulações médicas e técnicas invadiram meus
pensamentos quando ainda estava na Índia, e as compartilho aqui para
exemplificar características do pensamento ocidental. De um modo geral, nos
parece mais natural e reconfortante acreditar e incorporar o novo quando
podemos explicá-lo no “mundo concreto”. Assim, se alguns dos caminhos neuronais
dos orientais fossem diferentes dos nossos, como uma técnica deles poderia
“caber” em nós? não apresentariam padrões diferentes daqueles encontrados entre
possíveis voluntários ocidentais?
Para Jung (apud Aion, 1990, p.273):
"...Não se pode comparar a evolução histórica do espírito Ocidental com a do espírito indiano. Por isso, quem acredita que pode assumir diretamente certas formas conceituais do Oriente, desenraiza-se, pois estas formas não exprimem o passado Ocidental; são simplesmente conceitos teóricos e sem sangue, incapazes de fazerem vibrar as cordas profundas do nosso ser. Nossas raízes mergulham em solo cristão..."
Para Hauer (apud Shamdasani,1996,p.xIii)
"...Esta questão, do quanto e em qual extensão o caminho de salvação do Oriente é válido para o homem Ocidental, continua em suspenso e me preocupa seriamente. Não seria um erro e até perigoso se o homem Ocidental se dedicasse ao Yoga para obter a salvação? Por que esse homem não adere às pesquisas cientificas, a reflexões filosóficas da maneira Ocidental, como um caminho de salvação? Será que o Ocidental não tem seu próprio caminho místico que o leve ao encontro de si mesmo, que seria de mais utilidade para ele do que o Yoga? Por que a Psicologia Profunda e a Psicoterapia em desenvolvimento não seriam suficientes para isso? Será que, de fato, precisamos de um novo impulso do Oriente?..."
Apesar de entender e, até certo ponto, aceitar as observações de Jung
sobre a não validade prática dos caminhos do Oriente para um ocidental, sentia
em mim mesma os efeitos do Yoga; tanto do Hatha Yoga, que pratico há cinco
anos, quanto do Kundalini Yoga, que pratiquei por apenas seis meses.
Através da prática do Hatha Yoga, pude, aos poucos, acalmar minha mente,
alcançando mínimos momentos de “silêncio”. Quando esta se “calava”, parecia
haver espaço para “sons” de outros lugares, minha consciência era então tocada
por imagens, emoções e até sensações físicas antes silenciadas pelo “alto
volume” da mente. Esses novos “sons” podiam então ser reelaborados e integrados
pela consciência.
Relato aqui uma dessas experiências para proporcionar ao leitor uma maior
clareza sobre o que procuro descrever: após uma prática na qual alcancei um
grau maior de silenciamento da mente, entrei em contato com a imagem de uma
mulher que percebi ser minha mãe. Ela segurava um cartaz com letras grandes
escritas: “EU TE ENTENDI!”.
Não pretendo aqui dissecar a simbologia dessa
imagem por não ser esse o objetivo deste estudo, mas busco demonstrar que
através da prática do Yoga, me foi possível, e é para muitas outras pessoas que
vivem experiências similares, entrar em contato com material inconsciente. O
acesso da consciência às imagens inconscientes é um mecanismo psíquico natural,
compartilhado por todos nós, e que tem sido utilizado desde tempos ancestrais,
por povos diferentes, de maneiras diversas, com intuitos diferentes...
Portanto, é um processo natural do psiquismo humano.
Essa profunda vivência poderia ser trabalhada com o uso da Imaginação Ativa,
processo descrito por Jung em 1916 (Jung, 2000, v. VIII), no qual o indivíduo
deve concentrar-se em um ponto específico (o material de um sonho, ou no caso
acima descrito a própria imagem), e, em seguida, permitir que uma cadeia de
fantasias associadas se desenvolva. As imagens, aos poucos, “ganham” vida de
acordo com uma lógica própria, criando cenas que suscitam emoções e que podem,
então, ser elaboradas pelo ego consciente. Este deve participar ativa e
criativamente da cena, gerando uma nova situação psicológica que pode estimular
a cura de uma neurose.
No entanto, a questão central neste momento não é a
Imaginação Ativa, mas sim o fato de que uma técnica oriental (a prática do
Yoga) foi capaz de “vibrar cordas profundas do meu ser...”. Desta forma,
discordo de Jung sobre a não validade prática do Yoga para um ocidental, tema
que será mais profundamente discutido no decorrer deste trabalho.
Acredito que a forma de se estimular o sistema psíquico varia de método para
método, mas a reação desse sistema (neste caso, a de promover uma comunicação
entre consciência e inconsciente) deveria ser a mesma, se confiarmos na base
arquetípica da teoria junguiana. Assim, teoricamente, imagino ser possível a um
ocidental caminhar em direção à individuação através do Yoga, no entanto,
talvez cada indivíduo seja mais ou menos tocado por uma ou outra técnica,
dependendo de sua estruturação egóica, de seus mecanismos de defesa, dos
traumas vividos, de sua tipologia, de seu momento de vida, e etc.
E por que não
acrescentar como uma hipótese a ser refletida, que, possivelmente, técnicas
diversas toquem de formas diferentes as estruturas egóicas defensivas, com
isso, o ego teria que fazer um esforço novo para tentar impedir a entrada
desses novos conteúdos, podendo com essa nova reação desestabilizar suas
defesas, e na sua reestruturação acabar por integrar partes destes conteúdos.
É
importante ressaltar, que para que isso ocorra é necessário um ego saudável e
flexível, pois um ego frágil, enrijecido poderia quebrar frente a esta
necessidade de reestruturação.
LEIA >> Interpretação Psicológica do Kundalini - C.G. Jung - P2
LEIA >> Interpretação Psicológica do Kundalini - C.G. Jung - P3
Por: Priscilla Wacker