29 de jul. de 2018

Interpretação Psicológica do Kundalini - C.G. Jung - P1



Esta monografia versa sobre os quatro seminários apresentados por Jung em 1932 nos encontros que realizava no Clube de Psicologia, em Zurique. Nesses seminários, intitulados “A Interpretação Psicológica do Kundalini Yoga”, Jung abordou o simbolismo do sistema de chakras do Kundalini Yoga, entendendo-o como uma espécie de intuição da consciência coletiva oriental sobre a existência e o funcionamento do sistema psíquico. Ou seja, Jung enxerga no Kundalini Yoga uma intuição de sua própria teoria, e no despertar da kundalini, o iniciar do processo de individuação. Jung discorre sobre esse processo (do despertar da kundalini), amplificando seus símbolos através de mitos e imagens.

No presente trabalho, busco fazer uma releitura crítica dos pensamentos de Jung a respeito desse tema, com o intuito de renová-los e reposicioná-los dentro de uma perspectiva atual.



Introdução


Há cinco anos venho intensificando meu contato com o Yoga e, muitas vezes, fiquei impressionada com as correlações que poderia fazer com a Psicologia Analítica. Permaneci circundando o tema por muito tempo, sem conseguir encontrar uma ponta que pudesse desfiar para traçar paralelos com os estudos de Jung a respeito do Yoga. Finalmente, vencida pelo cansaço, desisti de me ocupar desta questão, e só voltei a pensar nela após uma viagem de 40 dias à Índia. Através do contato impactante com este país, pude experienciar o quanto o caldo cultural atua na formação do ser, na interpretação das experiências vividas, no estabelecimento dos referenciais de si mesmo e do mundo.

Seria então possível tentar estabelecer pontes entre uma forma ocidental e uma oriental de enxergar o ser humano?  

Em vários momentos, Jung pergunta se deveríamos nos aprofundar nas técnicas e conhecimentos estrangeiros a nós, ou se o mais eficiente seria nos concentrarmos em nossos próprios sistemas de crenças e de conhecimento. Para ele, ao nos desenvolvermos psiquicamente com referências ambientais, culturais, religiosas, familiares etc. relacionadas ao Ocidente, enraizamo-nos em solo ocidental e, assim, não seríamos capazes de assimilar, e de sermos transformados de fato, pelas verdades do Oriente, e vice-versa. ?

Tal questionamento se manteve presente em muitas obras de Jung a respeito do Oriente. Ao longo deste trabalho, cito algumas delas.

Durante minha estadia na Índia fui fortemente tocada pelo estrangeiro, pelo outro estranho a mim; e desta forma, pude compreender melhor as reflexões de Jung a respeito de se entregar, ou de ser absorvido, por um sistema cultural diferente.

Se realizada de forma inconsciente, essa imersão em outra cultura poderia levar, na concepção de Jung, a consequências desastrosas para o corpo e/ou psique. Em suas memórias (Jung, 1964), comentou o caso de seu amigo Richard Wilhelm, que, ainda jovem, imergiu na cultura chinesa, sendo totalmente impregnado pelo ponto de vista oriental. Quando retornou à Europa, Wilhelm voltou a sentir as necessidades do espírito europeu, o que lhe gerou um conflito psíquico grave, que Jung associou ao seu falecimento anos depois:
  
"...Essa mudança de Wilhelm e sua reassimilação do Ocidente pareceram-me um pouco irrefletidas e, portanto, perigosas. Temia que ele se encaminhasse para um estado de conflito consigo mesmo. Ao que me parecia, tratava-se de uma assimilação passiva, isto é, ele havia sucumbido à influência do meio; havia, pois, o risco de um conflito relativamente inconsciente, de um choque entre a alma Ocidental e a Oriental. Ocorrendo um processo desse tipo, sem que haja uma confrontação consciente profunda, há o risco de um conflito inconsciente que pode também afetar gravemente a saúde do corpo..."
(Jung, 1964, p. 328)

Da mesma forma, antropólogos ou profissionais de saúde mental que trabalham com psiquiatria étnica reconhecem o quanto pode ser desestruturante o choque entre sistemas culturais diferentes. Há relatos de pessoas (brancos) que, ao permanecerem por longos períodos em tribos indígenas, precisaram de socorro médico por sucumbir a uma vivência paranóica. Provavelmente, a experiência indígena com seus espíritos e rituais, fragilizou o sistema egóico desses indivíduos, que não é adaptado a essa forma de realidade. De modo inverso, sabe-se da desestabilização que o álcool, introduzido aos índios de uma forma não ritualística pelo homem branco, promoveu na estrutura da sociedade tribal indígena.


Observando-se então, a complexidade de se aventurar em outro continente, retorno às minhas próprias reflexões sobre os indianos. Eles se diferenciam de nós (ocidentais) em muitas questões; no tocante à forma de se vestir, de comer, de se expressar, de reagir, de relacionar-se com o humano e com o divino, com a realidade e a fantasia. Até mesmo sua linguagem corporal é diferente; mexem a cabeça com bastante frequência, num movimento regular de translação lateral. Não tenho certeza do significado de tal gesto, mas transmite uma tentativa de cooperação, podendo dizer sim, não ou talvez. Aliás, essa cooperação, essa abertura para o outro desconhecido, mesmo que, muitas vezes, com o intuito de obter vantagens, é evidentemente oposta à atitude ocidental, fechada em relação a esse outro.


As reações dos indianos, suas respostas, sua forma de viver a vida são tão diferentes das minhas e das pessoas com quem convivo que, como médica, comecei a formular hipóteses sobre possíveis diferenças biológicas. Será que com estímulos tão diversos dos nossos, seus cérebros também não podem funcionar, em níveis mais sutis,  de uma forma diferente? 


Sabe-se que após o nascimento, o cérebro ainda não está inteiramente formado, tem apenas um terço do volume que alcançará um dia, e a comunicação neuronal, que se faz do ponto de vista anatômico via sinapses (estruturas que conectam axônios e dendritos formando uma rede neuronal), também se encontra em desenvolvimento (Kandel, 2001). Será que este desenvolvimento não poderia se orientar de forma diferente, privilegiando ou negligenciando outros grupos neuronais? Será que análises do funcionamento cerebral, com técnicas de mapeamento por meio de ressonâncias magnéticas funcionais e testagens neuropsicológicas.

Tais especulações médicas e técnicas invadiram meus pensamentos quando ainda estava na Índia, e as compartilho aqui para exemplificar características do pensamento ocidental. De um modo geral, nos parece mais natural e reconfortante acreditar e incorporar o novo quando podemos explicá-lo no “mundo concreto”. Assim, se alguns dos caminhos neuronais dos orientais fossem diferentes dos nossos, como uma técnica deles poderia “caber” em nós? não apresentariam padrões diferentes daqueles encontrados entre possíveis voluntários ocidentais?


Tais especulações médicas e técnicas invadiram meus pensamentos quando ainda estava na Índia, e as compartilho aqui para exemplificar características do pensamento ocidental. De um modo geral, nos parece mais natural e reconfortante acreditar e incorporar o novo quando podemos explicá-lo no “mundo concreto”. Assim, se alguns dos caminhos neuronais dos orientais fossem diferentes dos nossos, como uma técnica deles poderia “caber” em nós? não apresentariam padrões diferentes daqueles encontrados entre possíveis voluntários ocidentais?

Para Jung (apud Aion, 1990, p.273):

"...Não se pode comparar a evolução histórica do espírito Ocidental com a do espírito indiano. Por isso, quem acredita que pode assumir diretamente certas formas conceituais do Oriente, desenraiza-se, pois estas formas não exprimem o passado Ocidental; são simplesmente conceitos teóricos e sem sangue, incapazes de fazerem vibrar as cordas profundas do nosso ser. Nossas raízes mergulham em solo cristão..."

Para Hauer (apud Shamdasani,1996,p.xIii)

"...Esta questão, do quanto e em qual extensão o caminho de salvação do Oriente é válido para o homem Ocidental, continua em suspenso e me preocupa seriamente. Não seria um erro e até perigoso se o homem Ocidental se dedicasse ao Yoga para obter a salvação? Por que esse homem não adere às pesquisas cientificas, a reflexões filosóficas da maneira Ocidental, como um caminho de salvação? Será que o Ocidental não tem seu próprio caminho místico que o leve ao encontro de si mesmo, que seria de mais utilidade para ele do que o Yoga? Por que a Psicologia Profunda e a Psicoterapia em desenvolvimento não seriam suficientes para isso? Será que, de fato, precisamos de um novo impulso do Oriente?..."

 Apesar de entender e, até certo ponto, aceitar as observações de Jung sobre a não validade prática dos caminhos do Oriente para um ocidental, sentia em mim mesma os efeitos do Yoga; tanto do Hatha Yoga, que pratico há cinco anos, quanto do Kundalini Yoga, que pratiquei por apenas seis meses.

Através da prática do Hatha Yoga, pude, aos poucos, acalmar minha mente, alcançando mínimos momentos de “silêncio”. Quando esta se “calava”, parecia haver espaço para “sons” de outros lugares, minha consciência era então tocada por imagens, emoções e até sensações físicas antes silenciadas pelo “alto volume” da mente. Esses novos “sons” podiam então ser reelaborados e integrados pela consciência.

Relato aqui uma dessas experiências para proporcionar ao leitor uma maior clareza sobre o que procuro descrever: após uma prática na qual alcancei um grau maior de silenciamento da mente, entrei em contato com a imagem de uma mulher que percebi ser minha mãe. Ela segurava um cartaz com letras grandes escritas: “EU TE ENTENDI!”. 


Não pretendo aqui dissecar a simbologia dessa imagem por não ser esse o objetivo deste estudo, mas busco demonstrar que através da prática do Yoga, me foi possível, e é para muitas outras pessoas que vivem experiências similares, entrar em contato com material inconsciente. O acesso da consciência às imagens inconscientes é um mecanismo psíquico natural, compartilhado por todos nós, e que tem sido utilizado desde tempos ancestrais, por povos diferentes, de maneiras diversas, com intuitos diferentes... Portanto, é um processo natural do psiquismo humano.

Essa profunda vivência poderia ser trabalhada com o uso da Imaginação Ativa, processo descrito por Jung em 1916 (Jung, 2000, v. VIII), no qual o indivíduo deve concentrar-se em um ponto específico (o material de um sonho, ou no caso acima descrito a própria imagem), e, em seguida, permitir que uma cadeia de fantasias associadas se desenvolva. As imagens, aos poucos, “ganham” vida de acordo com uma lógica própria, criando cenas que suscitam emoções e que podem, então, ser elaboradas pelo ego consciente. Este deve participar ativa e criativamente da cena, gerando uma nova situação psicológica que pode estimular a cura de uma neurose. 


No entanto, a questão central neste momento não é a Imaginação Ativa, mas sim o fato de que uma técnica oriental (a prática do Yoga) foi capaz de “vibrar cordas profundas do meu ser...”. Desta forma, discordo de Jung sobre a não validade prática do Yoga para um ocidental, tema que será mais profundamente discutido no decorrer deste trabalho.

Acredito que a forma de se estimular o sistema psíquico varia de método para método, mas a reação desse sistema (neste caso, a de promover uma comunicação entre consciência e inconsciente) deveria ser a mesma, se confiarmos na base arquetípica da teoria junguiana. Assim, teoricamente, imagino ser possível a um ocidental caminhar em direção à individuação através do Yoga, no entanto, talvez cada indivíduo seja mais ou menos tocado por uma ou outra técnica, dependendo de sua estruturação egóica, de seus mecanismos de defesa, dos traumas vividos, de sua tipologia, de seu momento de vida, e etc. 


E por que não acrescentar como uma hipótese a ser refletida, que, possivelmente, técnicas diversas toquem de formas diferentes as estruturas egóicas defensivas, com isso, o ego teria que fazer um esforço novo para tentar impedir a entrada desses novos conteúdos, podendo com essa nova reação desestabilizar suas defesas, e na sua reestruturação acabar por integrar partes destes conteúdos. 

É importante ressaltar, que para que isso ocorra é necessário um ego saudável e flexível, pois um ego frágil, enrijecido poderia quebrar frente a esta necessidade de reestruturação.

Por: Priscilla Wacker
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