O Yoga vem se tornando cada vez mais popular no Ocidente. Ao
mesmo tempo em que essa popularização permite à nossa sociedade entrar em
contato com uma prática milenar, que durante muito tempo foi mantida em
círculos fechados de eruditos, também leva a distorções e interpretações
equivocadas, já que se dissemina em uma cultura completamente diferente.
Assim, definir o Yoga não é uma tarefa fácil, a começar por sua origem: além de muitos textos terem sido perdidos ou destruídos, no passado esse conhecimento era transmitido oralmente na tradição Parampará [Parampará é a cadeia de transmissão de poder e conhecimento do mestre para o discípulo (Feuerstein, 1997).].
Talvez o Yoga esteja ligado ao início da própria sociedade como a conhecemos
hoje. “O Yoga nasce a partir da compreensão das manifestações externas da
natureza e suas influências subjetivas sobre a consciência humana” (Kupfer,
2001, p.12).
O Homem, desde o desenvolvimento da consciência, tinha sede
em conhecer-se, e suas dúvidas e questionamentos levaram alguns a uma
investigação quase (e para muitos) exaustiva a respeito de questões
ontogênicas: quem ou o que sou? Muitos se retiravam nas florestas, cavernas e
outros lugares isolados para vivenciarem um mergulho em algo “mais profundo”,
procurando experimentar, na prática, estados de consciência superior. Tais
experiências a respeito do Ser lhes serviam de base para a construção de todo
um conhecimento filosófico/teórico que pudesse ser transmitido. Assim,
primeiramente, surge o Yoga como algo essencialmente prático, adquirido pela
experimentação, e depois surge sua base filosófica (Kupfer, 2001). Nela, o
discípulo memorizava grande quantidade de versos que lhe eram passados por seu
mestre, e assim sucessivamente, sem qualquer alteração, para manter preservados
e intactos seus conhecimentos.
As mais antigas evidências históricas do Yoga associam-no ao ritualismo dos
povos pertencentes a uma civilização denominada Indo-Sarasvati, que habitava
cidades ao longo dos rios Indo e Sarasvati (Feuerstein, 1997). Importantes registros desta
civilização foram descobertos em escavações do século passado, em duas
principais cidades, hoje no atual Paquistão: Mohenjo Dharo e Harappa, que se
revelaram muito avançadas para seu tempo. Estima-se que viviam, somente em
Mohenjo Dharo, mais de 200 mil pessoas. As cidades eram organizadas, havia
sistema de esgoto, ruas definidas e outros indícios de planejamento urbano. Foi
esse povo que deixou um legado, não só para a Índia, mas para a humanidade: os
Vedas (Feuerstein, 1997).
Os Vedas, que em Sânscrito significa conhecimento, são
livros sagrados da espiritualidade indiana, considerados os mais antigos do
mundo. Foram escritos por volta de 3500 a.C., mas sua composição parece ser
ainda mais antiga devido à perpetuação do conhecimento via tradição oral,
estimando-se 6500 anos a.C. Nesses textos o Yoga já era citado, mas não da
forma como o conhecemos hoje. O Yoga Védico era ritualístico e envolvia ascese,
concentração mental, cânticos, adoração e controle da respiração (Feuerstein,
1998).
Em essência, os Vedas acreditam que por trás de toda
manifestação, só existe um Ser, Brahman. Tal idéia é mais bem desenvolvida nas
Upanishads, outros textos sagrados que vieram depois dos Vedas, nos quais as
diferentes realidades são emanações de uma realidade singular e transcendente,
Brahman.
Segundo Ravindra (2000, p.5):
Brahman é o absoluto, supremo, impessoal, infinito, eterno. A fonte pré-cósmica da divindade, a causa de todas as causas, sem começo e sem fim, do qual tudo emana e ao qual tudo retorna. Ele não se manifesta, mas está presente no maior corpo celestial e, também, na indivisível partícula, em tudo que é animado e não animado. Ele é a razão da consciência e da substância.
Então, Brahman é a essência não só de todo o universo como
também do manifesto e do imanifesto. Segundo os textos hindus, não existe um conceito
de começo ou fim do universo, o mesmo seguiria um processo contínuo de expansão
e retração; quando o ciclo tem início o universo começa a existir,
expandindo-se, ao final desta expansão se dá uma retração até a dissolução
novamente no todo. “Antes da criação do universo só existia Brahman em sua
forma não manifesta, nem espaço, nem tempo, nem sóis nem planetas. Por vontade
própria ele se manifestou, e sua energia operativa entrou em ação, começando o
ciclo de expansão” (Ravindra, 2000, p.10).
A personalidade humana denominada atman também é uma
manifestação de Brahman; no entanto, presa ao corpo (matéria), atman se
confunde, através de maya (ilusão), com uma consciência inferior condicionada e
distorcida, impossibilitando a realização em Brahman. A ilusão, maya, é causa
de sofrimento na medida em que confunde os estados psicomentais (consciência
inferior) com o Si Mesmo Transcendente. Com isto, a consciência inferior se
identifica com o corpo e suas dores, com a mente e suas aflições (duhkha, sofrimento
em qualquer nível), enquanto o estado de transcendência, quando se retorna a
Brahman, é representado por Sat, Cit, Ananda (existência plena, consciência
transcendente e bem aventurança) (Eliade, 1998). Si Mesmo Transcendente, ou
Purusha na tradição Samkhya ou atman na tradição vedântica é o âmago do próprio
ser. É a identidade autêntica de cada um, separada de todos os papéis, imortal
e imutável. É considerada supra-sensorial, consciência pura.
Em todas as tradições hindus, a realização do Si Mesmo
Transcendente é o mais nobre e valioso objeto da aspiração humana. Para
Feuerstein, o Si Mesmo Transcendente é diferente da noção de Self de Jung, que
corresponderia mais a um chamado “controlador interior”, sendo um dos aspectos
do Si Mesmo Transcendente (Feuerstein,1997). No entanto, entendo que Jung não
faz esta distinção, usando a terminologia Self, Si Mesmo, como equivalente ao Si
Mesmo Transcendente, Purusha e Atman do Yoga, dessa forma, também usarei esses
termos como equivalentes no transcorrer do texto.
As linhas do Yoga podem receber influências de duas
correntes filosóficas distintas; o Samkhya (que traz os conceitos de Purusha e
de Prakrti) e o Vedanta (que traz os conceitos de Brahman e atman). Penso que
Jung misturou essas duas filosofias em seu texto. O âmago desses conceitos,
quando misturados, poderia causar confusão naqueles versados no Yoga, mas os
termos usados por Jung são compreensíveis dentro do contexto da Psicologia
Analítica.
Em uma entrevista com Serrano, Jung deixa clara sua
correlação do Si Mesmo com Purusha ou atman (Serrano, 1970, p. 67):
“... Aquilo que chamo de Si Mesmo é um centro ideal, equidistante do ego e do inconsciente, equivalendo, de certa forma, à expressão máxima e natural de uma individualidade, seu complemento ou complementação, sua totalidade. A natureza anseia por expressar-se esgotando suas possibilidades. O Homem também. O Si Mesmo é essa possibilidade de complementação, de totalidade. Por isso é um centro ideal, uma criação, um sonho da natureza. Os hindus são sábios nesse assunto. O Purusha é o Si Mesmo. Também atman é algo semelhante”
Mas, se a dissociação entre o todo, Brahman, e a
personalidade humana, atman, causa sofrimento, o que fazer para cessar todas as
aflições (duhkha)? É para responder a tal pergunta que surge o Yoga.
Yoga vem do Sânscrito, e significa unir, jungir, atrelar, cangar. Sua tradução
mais usual é união, ou seja, uma técnica para unir ou religar a consciência
inferior à Realidade (Brahman). Portanto, Yoga é tanto um estado, um fim, como
um meio, ou uma técnica adequada para se alcançar o mais nobre objetivo da vida
humana: a libertação dos condicionamentos e de todo o sofrimento (Taimini,
2004).
Kundalini Yoga
O Yoga surgiu em uma cultura na qual os mestres se isolavam
para buscar seu crescimento pessoal através da introspecção. Com a observação
de si mesmo, desenvolveram, ao longo dos anos, diferentes técnicas, todas com o
objetivo de transformar e elevar estados mais baixos de consciência.
Como o ser humano, em seus diversos perfis, aprende e
apreende a vida de forma distinta, muitas técnicas foram desenvolvidas, havendo
mais de 200 escolas de Yoga que se baseiam em sete ramos principais: Raja Yoga,
Hatha Yoga, Jnana Yoga, Bhakti Yoga, Karma Yoga, Mantra Yoga e Tantra Yoga.
Existem, ainda hoje, definições discordantes sobre o que seria Tantra Yoga,
Kundalini Yoga e Laya Yoga; alguns acreditam serem escolas diferentes, ou seja,
cada uma delas conteria, em sua prática ou em sua filosofia, algum quesito
diferente da outra linha; enquanto outros estudiosos atestam que essas três
formas de Yoga seriam, na verdade, o mesmo sistema de pensamento e de prática
(Feuerstein, 2003).
Neste trabalho vamos seguir os estudiosos que unificam as
três linhas (Tantra Yoga, Kundalini Yoga e Laya Yoga). Para o Tantra Yoga,
corpo e mente são considerados unos, sendo o corpo um veículo da mente para se
atingir a transcendência. O sistema de trabalho com a kundalini é basicamente
tântrico em sua origem; age através da união da psique com a matéria, e da
mente com o corpo físico
Conforme Shamdasani (1996, p.xxii):
O tantrismo foi um movimento religioso e filosófico que se tornou popular a partir do séc. IV, sendo influenciado pela filosofia, ética, arte e literatura indiana. Segundo Agehananda Bharati, o que distingue o tantrismo do hinduismo ou do budismo, é sua ênfase na identidade do absoluto e do fenomenal em suas formas de adoração. Em seus rituais são usados elementos normalmente banidos de outros rituais religiosos tradicionais, tais como o vinho, a carne, o peixe, grãos secos e a relação sexual, pois o Tantra acredita no espiritual e sagrado de todas as coisas. O tantrismo é anti-ascetismo e anti-especulativo, rejeita o sistema de castas e celebra o corpo (reconhecido como o microcosmo do universo), representando uma corrente transgressiva ao hinduismo. No Tantra, se reconhece pela primeira vez na história da Índia a importância da deusa e a redescoberta do mistério da mulher.
Os chakras estão conectados entre si por canais de energia,
as nadis. São eles: Muladhara, Svadhisthana, Manipura, Anahata, Vishuddha e
Ajna, e o sétimo centro que transcende a existência corporal, denominado
Sahashara, no topo ou acima do topo da cabeça (Feuerstein, 1997). [ Os
chakras e as nadis são considerados por autores ocidentais como Feuerstein
(1989, p.258): “versões idealizadas de estruturas do corpo sutil, criadas para
guiar a visualização do yogue”. ]
A kundalini é representada na forma de uma serpente que deita adormecida em
Muladhara. Feuerstein (1989) a define como uma manifestação no microcosmo (o corpo)
da energia primordial do universo, que, através do corpo, se conecta com o
corpo-mente finitos. , estrutura que significa canal, conduto, veia ou artéria.
Portanto, nadis são qualquer uma das veias ou artérias por onde circula o
sangue e/ ou qualquer um dos canais sutis por onde circula a força vital.
Afirma-se que há 72.000 nadis, mas três são mais significativas para o
Kundalini Yoga: ida (energia da lua, representação do poder feminino, conectada
à narina esquerda); pingala (energia do sol, representação do poder masculino,
conectada à narina direita) e sushumna (um canal neutro situado empiricamente
no centro da medula espinhal, por onde a energia da kundalini pode subir desde
a base da coluna, localização empírica do primeiro chakra, até o topo da
cabeça, localização empírica do sétimo centro psicoenergético, sahashara)
(Pandit M. D., 2007).
Microcosmo significa “pequeno arranjo ou pequeno universo”, e refere-se ao ser
humano que é a imagem de seu criador. O microcosmo contém tudo que o macrocosmo
possui, é parte inseparável dele; por isso, o microcosmo contém em si o
evoluído e o não evoluído, o implícito e o explícito, o ativo e o latente,
energia, força, matéria, substância, qualidades e tudo mais. A origem dos dois
é a mesma e seu futuro também (Ravindra, 2000).
O objetivo do Kundalini Yoga é despertar a energia da kundalini através de
técnicas meditativas e práticas específicas do Yoga. Assim, a energia ascende
através de uma passagem estreita na medula espinhal (o sushumna nadi) [Sushumna
nadi é o canal central através do qual a força vital flui do chakra na base da
coluna até o topo da cabeça. É o caminho secreto pelo qual se transcende a
dinâmica da polaridade entre as correntes psicoenergéticas direita e esquerda,
conquistando a realização do Si Mesmo (Feuerstein, 1997). ] e passa pelos
seis centros de energia (os chakras), antes de atingir sua residência final, o
sétimo centro, sahashara. Aí se dará a união da energia feminina (a energia da
kundalini, ou seja, a manifestação da energia primordial do universo) com a
masculina (a energia da consciência), e nesse contexto, haverá a transformação
da personalidade em um sentido evolucionário de supraconsciência. “Aqui ambos
os hemisférios cerebrais tornam-se calmos, cessa o diálogo interior, perde-se o
sentido de tempo e espaço, e as falsas noções do mundo fenomenológico se fundem
ao todo” (Johari,1990, p.106).
Para Pandit M. D. (2007, p.201):
O despertar da kundalini não se refere a uma simples modificação glandular ou a um desvio na atividade hormonal do organismo. Envolve, nitidamente, a operação de um novo poder no corpo, e a ativação de uma área silente no cérebro, chamada a cavidade de Brahma (Deus). É o alvo da prática do yoga e o verdadeiro objetivo das disciplinas espirituais.
Segundo Avalon (1964, nota da contra-capa):
A kundalini, a serpente de poder, é mitologicamente falando, um aspecto de Shakti**, esposa de Shiva; filosoficamente é a energia criativa que forma a mente e a matéria, o poder fundamental que dá vida a todo o organismo. Ela é a energia cósmica divina que repousa na área mais baixa ou densa da matéria; no corpo estaria localizada na base da coluna vertebral, em muladhara, o chakra da base. Ela é o poder da matéria para se saber a si mesma. Ela é a Deusa, o coração de muitas religiões Orientais, não somente do hinduismo.
Para proporcionar ao leitor uma percepção mais clara do que se acredita possível com o despertar da kundalini, cito a seguir um trecho do livro de Gopi Krishna (2004) [Gopi Krishna (1903-1984) nasceu próximo a Caxemira, Índia. Devotado ao Yoga e à meditação, escreveu 16 livros, apresentando para o Ocidente uma visão clara do fenômeno da kundalini (Krishna, G., 2004).], no qual ele relata os sintomas pelos quais passou durante esse processo, como alterações bruscas de humor, apatia, percepções “estranhas” de si e do mundo e etc. O livro é permeado de descrições suas e de outras pessoas que passaram por experiências similares:
... Com o despertar da kundalini inicia-se uma espantosa atividade em todo o sistema nervoso, do alto da cabeça aos dedos dos pés. O corpo se torna um laboratório em miniatura, funcionando em alta velocidade, noite e dia. Nos documentos chineses, tal fenômeno é descrito como a “circulação da luz”, e nos manuais indianos, como a “subida de Shakti”, ou energia vital. Por todas as partes do corpo, nervos cuja existência jamais é percebida ordinariamente, são agora forçados por algum poder invisível, a um novo tipo de atividade, que pode ser percebida pelo indivíduo tanto de maneira imediata quanto gradual.
Através de todas as suas inumeráveis terminações, os nervos começam a extrair uma essência semelhante ao néctar dos tecidos vizinhos. Esta essência apresenta-se de duas formas distintas, uma como radiação, outra como essência sutil, que flui para a medula espinhal. Uma porção desta essência inunda os órgãos reprodutores, tornando-os anormalmente ativos, como se para manterem o mesmo ritmo de atividade de todo o sistema nervoso. A radiação, aparecendo como uma nuvem luminosa na cabeça, flui para o cérebro, e, ao mesmo tempo, corre através dos nervos, estimulando todos os órgãos vitais, em particular os da digestão, a fim de ajustá-los às funções da nova vida introduzida no organismo. Em outras palavras, o despertar da kundalini denota o fenômeno do renascimento, aludido em termos claros ou velados no saber religioso da humanidade [Esse fenômeno de transformação ou renascimento é mencionado por Cristo em linguagem metafórica quando de seu diálogo com Nicodemus: “Em verdade, vos digo que aquele que não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus.
O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é Espírito. Não vos maravilheis em vos ter dito: necessário vos é nascer de novo” (Bíblia Sagrada: João 3.6. apud Krishna, G., 2004, p.52).]. Uma conexão mais poderosa e direta é então estabelecida entre o indivíduo e a consciência universal (Gopi Krishna, 2004, p.56)...
Ainda para Gopi Krishna (2004, p.126):
Minha humilde contribuição pessoal à antiga tradição da kundalini - não uma hipótese especulativa, mas o resultado direto de minha experiência - é que esse reservatório adormecido de bioenergia não somente é responsável pela experiência mística, e os ainda desconcertantes fenômenos psi, como pelo atualmente não localizado e ainda questionado mecanismo evolucionário nos seres humanos, e também pela fonte originária do gênio e do talento extraordinário.
Gopi Krishna deixa bem clara sua crença de que o despertar
da kundalini, possibilidade inerente a todo ser humano, contém indicações
preciosas sobre as normas de vida e organização da sociedade, necessárias à
satisfação do impulso evolucionário da espécie que caminharia na direção de uma
supraconsciência. Trata-se de uma consciência cósmica, um estado perene de
percepção, isento de altos e baixos, desprovido de complexos, tensões,
ansiedades, neuroses e medos, com um firme controle da mente e do corpo, um estado
de êxtase inexcedível e supra-humano. [ O filme Ram Dass: Fierce Grace
(2002) do diretor Mickey Lemle proporciona uma bela imagem dessa chamada
consciência cósmica. ]
Jung e o Oriente
Já em 1912, Jung fez interpretações sobre os Upanishads [Os Upanishads
são consideradas a essência filosófica da mais antiga sabedoria dos Vedas;
alguns autores acreditam que foram escritas mais de 1.180 Upanishads, com data
de elaboração provável variando de 800 a 200 a. C. Não se admite que as
Upanishads possam ser compreendidas da mesma forma que um texto de filosofia
ocidental; ela é entendida por meio de uma transformação daquele que a escuta
ou lê, uma vez que fala sobre aquilo que não pode ser descrito (Brahman, Atman)
e transporta o leitor para vivenciar essa realidade (Tinoco, 2005).] e
o Rig Veda [Rig-Veda ou o Conhecimento de Louvor é a mais antiga das
coleções védicas. Não se sabe ao certo, mas pode datar de 3000 a.C. ou antes
disso. Embora ainda não houvesse um caminho sistemático do Yoga, várias ideias
e práticas importantes são prenunciadas nesse hinário, e seus ensinamentos
podem ser chamados de “Yoga Arcaico” (Feuerstein, 1997).], textos ancestrais
para o hinduísmo, em sua obra “Símbolos da Transformação” (Jung, v.V, 1986). A
partir de 1920, passou a frequentar a Escola de Sabedoria, fundada
por Hermann Keyserling [Hermann Keyserling foi o primeiro pensador
ocidental que concebeu uma “cultura planetária”, além do nacionalismo e da
cultura etnocentrista baseada no reconhecimento da igualdade de valores das
culturas e filosofias não ocidentais.], onde conheceu e realizou colaborações
com pensadores dos sistemas orientais, tais como Richard Wilhelm, Heinrich
Zimmer, Walter Evans-Wentz, Wilhelm Hauer entre outros. Em 1929, publicou em
conjunto com Richard Wilhelm “O Segredo da Flor de Ouro, um Livro de Vida
Chinês” anteriormente, no mesmo ano, ambos
haviam publicado uma versão resumida do mesmo livro – “Dschang Scheng schu: a
Arte de Prolongar a Vida Humana”.
Entre 1930 e 1932, Jung realizou seminários intitulados “Paralelos Ocidentais”,
nos quais discorreu sobre os paralelos psicológicos entre o Ocidente e o
Oriente, já abordando o Kundalini Yoga e as interpretações simbólicas dos
chakras. Em 1932, o indologista Wilhelm Hauer, após uma fértil correspondência
com Jung, apresentou seis seminários no Clube de Psicologia em Zurique,
intitulados “Yoga, significado dos chakras”, sendo seguido por Jung, que
apresentou quatro seminários intitulados “A Interpretação Psicológica do
Kundalini Yoga”. Nestes seminários, que são usados como referência do presente
trabalho, Jung procura estabelecer um encontro entre o sistema de chakras e a
Psicologia Analítica, aprofundando a ideia do Kundalini Yoga como fonte de
representação simbólica da experiência interna e do processo de individuação.
Jung manteve por toda a vida uma produção dedicada ao tema:
comentou sobre o “Yoga Sutra” de Patãnjali; o “Amitayur-Dhyans-Sutra” e o “Shrichakrasambhara”.
Em 10 de maio de 1930, em Munique, no discurso comemorativo de morte do seu
amigo pessoal Richard Wilhelm, Jung (apud Shamdasani, 1996) pronunciou: , entre
1938 e 1939, em palestras ministradas na Eidegnossische Technische Hochschule
(Instituto de Tecnologia Federal da Suíça). Também publicou dois artigos com
suas impressões a respeito da viagem que fez à Índia - “O Mundo de Sonhos da
Índia” e “O que a Índia Pode nos Ensinar” (Jung, v.X/3, 2000); artigos
específicos em relação à religião indiana: “Yoga e o Ocidente” (Jung, v.XI/5,
1980) e “A Psicologia da Meditação Oriental” (Jung, v.XI/5, 1980) ), além de um
prefácio para o trabalho de Heinrich Zimmer, “O Caminho para o Self “ (Jung,
v.XI/5, 1980).
... Quando Roma subjugou politicamente o Oriente, o espírito do Oriente penetrou em Roma; assim, sem que os romanos percebessem, Mithras* se tornou seu deus da milícia. ... Atualmente a Europa subjuga politicamente o Oriente, será que o espírito do Oriente não estaria da mesma forma penetrando em nossa cultura? Sei que nosso inconsciente está abarrotado de simbolismos do Oriente, e acredito que haverá um grande impacto do pensamento oriental sobre a psicologia ocidental...
* As primeiras referências ao deus Mithra foram encontradas na Ásia e datam do século 14 a.C. As referências mais antigas de uma adoração ao deus no Ocidente datam do século 5 d. C. Mithras seria considerado o “grande mestre de dez mil olhos, o mais poderoso entre os deuses, o mais forte dos mais fortes”. Conta-se que teria sido trazido a Roma, onde se tornou o grande deus das milícias, por piratas da Ásia Menor no século 1 a.C.
Em 1938, foi convidado pelo governo britânico para
participar das festividades do 25º jubileu da Universidade de Calcutá, quando
viajou por três meses pela Índia. Em suas memórias (1963), conta que estava
profundamente convencido do valor da sabedoria oriental. Jung teve a
oportunidade de falar com representantes da mentalidade indiana, evitando
propositadamente “homens santos”, por acreditar que “devia contentar-se com sua
própria verdade, não aceitando nada que não pudesse atingir por si mesmo”
(Jung, 1963, p.242).
Ele ficou muito impressionado com o fato de a espiritualidade indiana conter
tanto o Bem quanto o Mal, uma vez que identificava na mentalidade cristã uma
busca pelo Bem e uma aversão ao Mal. Assim, a espiritualidade indiana não
lidaria com esta polarização, mas sim com o todo, estado que procura obter
através da meditação, ou do Yoga. Portanto, a forma de se entender o mundo já é
diferente desde o início: nós (ocidentais) enxergamos os polos e os orientais,
o todo.
Em suas memórias Jung (1963) relatou que durante sua estadia na Índia, após ter
sido internado por uma crise de disenteria, teve um sonho (citado abaixo) que o
fez entender que deveria voltar às “preocupações negligenciadas” há muito
tempo, e que interessavam ao Ocidente. A aparição do mito do Graal no sonho
sugeriu-lhe que deveria se voltar para as coisas de sua própria cultura: “era
como se o sonho me perguntasse: que fazes na Índia? É melhor que procure para
teus semelhantes o cálice da salvação, o salvator mundi de que tens tanta
necessidade. Não está a ponto de demolir tudo o que os séculos construíram?”
(op. cit., p. 248). Com esta conclusão, conta que optou por apagar suas
impressões hindus, intensas como eram, e mergulhar em seus textos alquimistas
latinos.
Apresento abaixo o sonho em versão resumida (Jung, 1963, p.246):
Era uma ilha desconhecida perto da costa sul da Inglaterra, estávamos (eu e um grupo de turistas) no pátio de um castelo medieval; na sua frente elevavam-se torres com escadas que desembocavam numa sala com colunas iluminada por velas, onde seria a Celebração do Graal. Tinha um professor alemão que impressionava pela sua erudição e inteligência, mas falava sem cessar de um passado morto e expunha sabiamente as relações entre as fontes inglesas e francesas da história do Graal. Ele parecia ignorar o ambiente imediato e real, comportava-se como se estivesse em uma sala de aula, não via a escada, nem as luzes, nem a festa que estava por vir.
A cena mudou e todos nós, com exceção do professor alemão, estávamos fora do castelo, íamos para o norte em busca do Graal; após uma extenuante caminhada, já era noite e só havia rochedos, e o grupo se deitava sonolento. Descobri que um braço de mar dividia a ilha em duas metades, em sua parte mais estreita a largura do braço de mar era de uns 100 metros, refleti que eu deveria atravessar o canal a nado em busca do Graal, e quando ia me despir, acordei.
Ao ler esse sonho e a respectiva interpretação de Jung, ficou ainda mais clara
sua dificuldade de se despir de seus valores e ideias e mergulhar nas águas em
busca do Graal. O quanto, defendido, não pôde se reconhecer no professor alemão
sábio e erudito que não era capaz de ver toda aquela realidade impressionante
que se manifestava a sua frente? Como Jung, que acredita em uma estrutura
psíquica arquetípica compartilhada pela humanidade, pôde entender que a busca
do Graal é algo que só se relaciona com o Ocidente?
Enfim, esses questionamentos, que são re-abordados no decorrer deste trabalho,
não têm o intuito de desmerecer o mestre, mas sim de relativizar suas
considerações sobre o Kundalini Yoga, construídas sob a perspectiva de um
ocidental que, aparentemente, não se deixou tocar pelas águas do Oriente. Mesmo
assim, e apesar das críticas dos pensadores orientais (abaixo citadas), entendo
que Jung pôde dar ao Ocidente, como sempre, uma grande contribuição em relação
ao sistema de chakras, ainda que de forma racional; afinal, a razão é uma
função da consciência que auxilia o ser humano, nesta grande obra da vida, que
é dar luz à escuridão...
Ao ler sobre o Kundalini Yoga em textos de Yoga escritos por orientais, tive a
oportunidade de conhecer suas opiniões sobre a visão de autores da Psicologia
Ocidental frente a esse conhecimento. Quando nós (ocidentais) nos deparamos com
o desconhecido, tendemos a racionalizar, categorizar, julgar..., ações que
talvez não favoreçam o entendimento real da sabedoria oriental, cujo grande
valor está exatamente na não racionalização, na não categorização, no não
julgamento, e sim na experimentação, na aceitação, no todo...
Destaco a seguir algumas críticas de autores orientais:
Gopi Krishna (2004, p. 139):
Uma vez que a experiência mística e os conceitos da religião não se ajustavam à sua hipótese, Freud empreendeu tranquilamente a tarefa de demolir todo o edifício da religião e do sobrenatural. Em sua opinião, as duas coisas nada mais eram senão estados patológicos da mente, uma regressão ao narcisismo infantil...
Gopi Krishna (2004, p. 57):
...Uma antiga obra chinesa, O segredo da Flor de Ouro, contém indicações indiscutíveis sobre o processo do despertar da kundalini, e ninguém com algum conhecimento sobre o tema deixaria de percebê-las. Não obstante, C.G. Jung, em seu comentário sobre o livro, inteiramente preocupado com suas próprias teorias a respeito do inconsciente, encontra na obra apenas material para confirmação de suas ideias, nada além disso. O mesmo aconteceu em um seminário feito por ele sobre o tema kundalini. Nenhum dos homens cultos presentes, segundo fica evidente pelos conceitos que expressaram, exibiu o menor conhecimento sobre o real significado do antigo documento que discutiam no momento.
Shankar (2008, p. 50):
Normalmente nós nos limitamos. Dizemos: - eu sou do Oriente, eu sou do Ocidente. - Quando nos identificamos com algo limitado, a habilidade para amar também se torna limitada. O saber também se torna limitado.
Jung e o Kundalini Yoga
Jung conta que teve seu interesse despertado pelo Kundalini Yoga após o
atendimento de uma paciente que crescera no Oriente, cujos sonhos e fantasias
só foram adequadamente entendidos por ele após seu contato com o livro de
Avalon (1964), “A Serpente do Poder”.
Jung insistia na tentativa de demonstrar de formas diferentes e em culturas
diferentes a dualidade da psicologia humana - de um lado, o aspecto pessoal, no
qual somente as questões pessoais teriam significado; de outro, uma psicologia
na qual o aspecto pessoal seria desinteressante e ilusório, valorizando-se a
experiência humana impessoal, ou arquetípica, ou seja, aquela que está presente
nas raízes compartilhadas que formam a espécie.
Segundo Jung (apud Shamdasani, 1996, p.26):
Você deve à existência destes dois aspectos (o pessoal e o impessoal) o fato de ter conflitos fundamentais, de ter a possibilidade de um outro ponto de vista, de modo que você possa criticar e julgar, reconhecer e entender a si mesmo. Pois quando você é só um com uma coisa, você é completamente idêntico, você não pode compará-la, você não pode discriminar, você não pode reconhecê-la... ...seria impossível julgar este mundo (pessoal) se você não tivesse também um ponto de vista de fora (impessoal), e isso é dado pelo simbolismo das experiências religiosas.
O despertar da kundalini pode então ser percebido como esta experiência
religiosa ou mística que, de um ponto de vista simbólico, alude ao processo do
despertar da parte impessoal que se passava na paciente acima citada, e que se
passa, potencialmente, em todos nós. Portanto, para Jung, a descrição do
despertar da kundalini através do sistema de chakras é uma rica fonte de
representações simbólicas da experiência interna e do processo de individuação,
assim definindo-o em termos psicológicos:
O Kundalini Yoga foi originalmente um processo de introversão, esta introversão proporcionou a percepção e a caracterização de processos internos de transformação. Após muitos milhares de anos, esta percepção se tornou uma metodologia organizada que atua através de vários caminhos diferentes. O conceito de kundalini tem para nós somente um uso; descrever nossas próprias experiências com o inconsciente, as experiências que têm a ver com a iniciação dos processos supra-pessoais (apud Shamdasani, 1996, p.xxix).
É importante ressaltar que Jung sempre fez questão de
reafirmar seu posicionamento no tocante a manter-se na interpretação
psicológica da filosofia yogue, não acreditando que as técnicas yogues
surtissem efeito prático em um ocidental. Argumentava que tais técnicas não
teriam correlação com nossa (dos ocidentais) psique profunda; assim, estaríamos
apenas imitando um comportamento, sem sermos de fato tocados por ele. Jung
acreditava que a prática do Yoga poderia fazer mal a um ocidental, podendo,
inclusive, causar estados de loucura. Assim, “os Ocidentais criariam, ao longo
dos séculos, sua forma própria de Yoga baseada nos princípios do cristianismo”
(Jung apud Shamdasani, 1996, p.xxx).
Outros autores ocidentais que se interessavam pela cultura
oriental também não acreditavam que os exercícios de Yoga, que estavam sendo
popularizados por Vivekananda [Swami Vivekananda foi um monge, yogue
e filósofo hindu. Propagador da filosofia Vedanta, assim como dos quatro
principais ramos do Yoga, Karma Yoga, Bhakti Yoga, Jnana Yoga e Raja Yoga, além
de inovador no esforço de examinar os pontos de convergência do pensamento
ocidental e oriental acerca de temas ligados à ética e espiritualidade.
Participou de um congresso de Religiões Mundiais em Chicago em 1893, onde
conquistou notoriedade.] na América, estivessem proporcionando um bem.
Keyserling (apud Shamdasani, 1996, p. xxxi), por exemplo, afirmou: “... nenhum
americano tinha, por conta dos exercícios de respiração, atingido um estágio de
iluminação, mas, ao contrário, muitos teriam ficado loucos...”. Na mesma
publicação, Keyserling acrescenta:
Os conceitos indianos são “aliens” para nós Ocidentais. A maioria das pessoas é incapaz de se relacionar profundamente com eles. Além disso, psicologicamente nós somos cristãos, tendo ou não consciência do fato, assim qualquer doutrina que estiver embasada pelo cristianismo terá uma chance maior de nos tocar internamente do que uma doutrina, por mais profunda que seja, mas estrangeira (op. cit, p.xxxi).
LEIA >> Interpretação Psicológica do Kundalini - C.G. Jung - P1
LEIA >> Interpretação Psicológica do Kundalini - C.G. Jung - P3