A Umbanda é uma religião conhecida essencialmente por
praticar a Caridade e por ser uma religiosidade de Resistência Social. Ao menos,
assim aprendi com aqueles que foram meus mestres dentro do terreiro, mestres
doutrinários e em leituras na faculdade.
Ela é de Caridade pois traz como bases existenciais os
ensinamentos que Jesus deixou em vida como: postura de humildade, fazer o bem
sem olhar a quem, buscar dar de graça o que temos sobrando, repartir o que
temos contado, não alimentar vícios, não guardar rancores, amar ao próximo como
a nós mesmos. E é uma religião de Resistência por trazer ao seu culto os
arquétipos de figuras que historicamente foram ou são discriminadas pelo senso
comum da sociedade como os Pretos Velhos, os Índios, os Exus, Baianos, etc.
Há quem tente inverter esse aspecto natural de nossa
religião, e queira tirar da Umbanda essas suas características que a marcam profundamente
em sua identidade. Tentam fazer uma substituição terminológica invertendo a
Caridade pela Solidariedade e Resistência por Resignação.
Eu diria que essas intenções em substituir as terminologias
não batem com a realidade da Umbanda.
O ato de solidariedade intrinsicamente requer daquele que é
solidário uma percepção de que seu ato retorne de alguma maneira para ele,
diríamos até que se encaixa numa proposição de querer barganhar com uma
proposta moral. Ao ser solidário você espera uma cooperação mútua, onde quem
recebe (no presente ou no futuro) te auxilie em suas responsabilidades sociais,
te devolva na mesma “moeda” o que recebeu. Ou seja, a solidariedade traz a
necessidade de interdependência das relações.
Pois bem, se compararmos com a Caridade veremos que existe
um abismo enorme entre essas posturas.
Ao contrário da Solidariedade, a Caridade é um ato gratuito.
Logo que requer do caridoso apenas a vontade de fazer o “bem”, e não necessariamente
esse “bem” precisa voltar a você para que continue a praticá-lo. E acima de
tudo, você não espera uma cooperação de quem recebeu seu ato de caridade, até
por que as proposições de quem recebe podem ser totalmente diferentes das suas.
Ou seja, você pratica seu ato de Caridade por ter algo
sobrando, ou por estar em uma religião que visa essa prática como manutenção moral
e espiritual do mundo, ou por praticar uma determinada filosofia de vida; mas
quem está recebendo não precisa comungar dos mesmos ideais que os seus. Quem é beneficiado
pelo seu ato caridoso pode muito bem ser um ateu ou até de outra religião, pode
estar enquadrado numa outra realidade social e até ter filosofias distantes da
sua, e nem por isso você deixará de praticar sua caridade, pois ao contrário da
solidariedade, ela é fornecida ao mundo sem custos, afinal ela é “visceral”.
Sendo assim, a Solidariedade é um ato que fazemos com o
pensar, é mais racional, distante... Logo que somos solidários em tragédias em
que não podemos tocar no ponto trágico das coisas, somos solidários com catástrofes
ou guerras onde outros povos e nações sofrem por motivos que estão acima das nossas limitações para intervir, ou por fim, a solidariedade é um ato a ser
praticado por instituições privadas (empresas) que visam agir com o “bem” esperando “algo” em troca, ou seja, mercantilizar
suas intervenções sociais.
De maneira nenhuma a Solidariedade pode substituir a Caridade,
nem terminologicamente e nem moralmente, pois ser caridoso é um ato presente
que envolve seu sentimento e seu afeto para com a realidade de alguém próximo de
você independentemente de qualquer coisa. A Caridade não exige interdependência
pois é um gesto de amor, parte do interno de cada ser.
Existe um afastamento que diferencia muito essas posturas. Ser
solidário é agir com a razão propriamente dita, ser caridoso é agir com o
sentimento e de coração aberto. Temos de deixar isso muito claro!
Já sobre a questão sobre a Resistência ser substituída pela Resignação.
Temos de levar em conta que ser resignado dentro da realidade social que a Umbanda
vive em seus pouco mais de cem anos é no mínimo uma pusilanimidade.
Podemos nos questionar, “quantas pessoas lutaram para que a
Umbanda fosse reconhecida como religião?”, ou “quantas pessoas lutaram para que
nossas entidades fossem vistas pela sociedade com o devido respeito que elas
merecem?”. Pode não parecer, mas a Umbanda já apanhou muito da sociedade. Talvez
o frescor que ela esteja vivendo hoje
faça com que pessoas desavisadas pensem a nossa religião apenas como um habitat
de encontros espiritualistas e epifanias de desapego. Mas os mais antigos não aceitam
essas distorções, a tradição tem que prevalecer.
Se compararmos Resistência com Resignação veremos que existem
diferenças enormes entre elas.
Resignação requer que aceitemos determinadas situações como
dadas e sem possibilidade de mudanças. Já a Resistência é um termo de reação
perante as inconstâncias que nos atingem. Quando você vai conversar com Exu, Boiadeiro,
Baiano, você está buscando neles uma Resignação ou Resistência? Está buscando
aceitar suas limitações ou reagir e ultrapassar seus limites? Está buscando se
manter como está ou quer ir além? Está buscando ser submisso ou resistente as variáveis
da vida?
Algumas pessoas podem fazer apologia em prol de uma Umbanda “solidariamente
resignada”, ou seja, uma Umbanda que busca fazer o bem de maneira seletiva e
que aceite as coisas como estão. Essa lógica funciona bem quando pastores
neopentecostais tentam operar as consciências de seus fieis.
Eu, preponderantemente discordarei, e digo, a Umbanda sempre
foi e sempre será uma religião de Caridade e Resistência, ou seja, uma religião
que pratica o amor gratuito e que luta contra as intransigências sociais.
Dizer que não somos uma religião de Resistência apenas pelo
fato de que não cultuamos os Orixás da mesma forma que os Candomblecistas é um
desrespeito. Pois o umbandista, pode ver Orixá na sua energia sim, mas será
impossível arrancar de nós a capacidade de nos sensibilizar perante uma imagem
artesanal de Nanã, Obaluaê, Ogum, Yemanjá, entre outros. Nada nem ninguém
arrancará de nós a capacidade de nos sensibilizar perante as lendas que
caracterizam cada Orixá. Nada nem ninguém arrancará de nós a capacidade de nos
vermos nos gestos e vestimentas de outras religiões de matriz africana. Nem
arrancar a nossa aproximação na luta por direitos, a luta contra a
intolerância...
A Umbanda é religião de Amor e Luta, tentar apagar isso de
nossa história é desonestidade intelectual, um conto de vigário que para
adaptar a religião a egos e interesses mercantis fazem qualquer coisa.
Que a Caridade e a Resistência a nossa amada Umbanda
sobreviva sempre!!!
Axé!!!