19 de abr. de 2017

Umbanda nas Trincheiras Etno-Históricas - Por: Alanna Souto


A umbanda é uma religião de resistência? Elaboro a pergunta após assistir o VÍDEO dos sacerdotes Rodrigo Queiroz e Alexandre Cumino que buscam refletir nessa live sobre o enunciado da expressão “a umbanda é a manifestação do espírito para a caridade” proferida por Zélio Fernandino de Morais, anunciador da umbanda enquanto religião, por meio do caboclo das 7 encruzilhadas, segundo informa vários testemunhos orais sobre está definição inicial ou de fundação do que se trata umbanda.

Mas a questão que levanto não é para debater propriamente a expressão acima que depois foi corrigida a partir das fontes revisitadas por Alexandre Cumino na sua obra “A história da umbanda- Uma religião brasileira” (2010), para “a umbanda é manifestação do espírito para a prática de caridade”. Aliás, o vídeo em questão dos sacerdotes da umbanda paulista levantam questões interessantes e reflexões bem pertinentes que ajudam, de fato, a pensar sobre a umbanda, de forma mais madura e menos “Alice, país das maravilhas”, onde o pensamento mágico perde-se na navalha dos delírios do fanatismo, sem conseguir sair da toca do coelho. E a grande sacada é a saída da toca ou da caverna.


A sentença, "umbanda é uma religião de resistência?" surge a partir da afirmação absolutista do sacerdote Rodrigo Queiroz que, de forma, imperativa diz no minuto 35:53 do vídeo a seguinte oração “a umbanda não resgata, a umbanda não é uma religião de resistência...”. Pausem. E vamos pensar sobre isso.

O fato da umbanda não cultuar os orixás da mesma forma que faz os povos de terreiro de matriz africana — o candomblé que sim revisita os ritos das nações africanas que no Brasil desembarcaram no período do tráfico negreiro colonial, como forma de resistência, inclusive — não retira a carga cultural destes povos africanos carregadas por ela, a umbanda. E não somente cultura africana, mas também indígena, uma outra identidade bem forte na cosmogonia umbandista.  Daí, retomo o trecho destacado no início desse texto referente ao capítulo Nação Umbanda do livro Cartografia Social dos afrosrreligiosos em Belém do Pará, editado pelos próprios umbandistas e afro-religiosos da capital do Pará, coordenado pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), quando lá se diz “As linhas mais significativas são a tríade: linha yorimá (pretos velhos), linha dos caboclos e yori (crianças) ...”.

Nessa direção pergunto-vos quem a umbanda deseja representar e dar voz nesse triângulo divino que se forma a partir dos arquétipos dos pretos velhos, caboclos e erês? Não esquecendo que a Umbanda é uma religião monoteísta que acredita num único “D`us” (masculino e feminina). Certamente não são os representantes da cultura japonesa ou muito menos os mestres da yoga indiana. Não que esses matizes não estejam ligados a essa pirâmide divina da umbanda, contudo, de modo mais direto, a Umbanda no seu espaço das representações que se organiza enquanto religião brasileira no dia 15 de novembro de 1908 expressando em alto e bom som que espíritos que se apresentam na forma de caboclos, pretos velhos e erês são espíritos de luz dotados de sabedoria gigantesca e milenar tal quais a de um “mestre ascenso”, geralmente, de cor da pele branca, que se manifestavam nas sessões espíritas. Contudo, o caboclo, o preto velho, o erê, o exu então... nem pensar nas sessões kardecistas do início do século XX, pois todos esses espíritos eram tidos como espíritos inferiores não aptos para curas ou orientação na perspectiva do espiritismo daquela época.

Zélio Fernandino anuncia então uma nova religião em que caboclos, pretos velhos e erês, espíritos que já se manifestavam nos círculos de macumbas[1] antes da umbanda enquanto religião, seja nas cidades ou nos sertões do Brasil, como mestres orientadores para um caminho de cura e libertação.  Então nesse sentido a umbanda vai ser sim uma religião de resistência, pois vai trazer com ela uma força social para além da questão espiritual. Categoria sociais que foram invisibilizadas e massacradas ao longo da sua história. Até parece óbvio, mas quando um sacerdote diz que umbanda não é resistência é importante refletirmos sobre tal afirmação.

Por que ela não seria uma religião de resistência se ela traz em sua “divina trindade” o tripé de figuras que carregam em sua ancestralidade a representação daqueles povos que foram ao longo da história massacrados, segregados e seus descendentes marginalizados até hoje?

A umbanda nasce visibilizando, a princípio, a sabedoria dos povos tradicionais escamoteados e maltratados por colonizadores do tempo mercantil ao capital.  Vai dar voz aqueles espíritos xamânicos ameríndios, aos pajés, e muitos outros espíritos que vem na roupagem do índio; aos descendentes das civilização africana, representados pelos pretos velhos, que se diga de passagem, essa designação preto e velho é para sim reafirmar sua “raça” e sua sabedoria antiga, milenar. E os erês? A linha dos erês é um mistério bem mais do que as outras duas linhas no meu ponto de vista, pois poucos conseguem entender a linha Yori. Alguns toscamente acreditam que são crianças como os filhos pequenos que tem nas suas casas. Nada disso. Quem é Yori? São mestres que representam o princípio de tudo, carregam consigo a pureza tão mais próximo da criança do que de um adulto carregado de vicissitudes e malícias, logo vem na roupagem das crianças.  E o mistério vai muito, além disso, certamente, se fomos para pensar, os erês, diferente das outras linhas vão trazer para seu campo das representações não somente pequenos mestres índios, caboclinhos ou pretos, mas também manifestações de pequenos mestres da civilização indo-europeia, mas todos se apresentam com simplicidade nos seus nomes: Tupazinho, a Jureminha, Mariazinha da beira da praia, Aninha dos ventos, caboclinho da mata e muitos outros.

Muitas dessas “entidades” já atuavam nas searas das macumbas de Norte a sul do país na prática de cura, limpeza, nos ritos de prosperidade e até de amor. A pajelança e a encantaria amazônica já sinalizava como campo de confrontos culturais desde os fins do século XIX e início do século XX. Nessa perspectiva Aldrin Moura (2008) vai nos mostrar: “(...) uma longa história de exclusão da pajelança do léxico médico da Amazônia através de uma perseguição dissimulada que mescla alianças e conflitos entre os próprios pajés e os esculápios oficiais” (p.61).  Sendo assim essa pajelança cabocla marginalizada e oprimida pelo aparato policial da época firmava suas trincheiras na cidade ou nos sertões amazônicos não se eximindo da disputa simbólica para firmar seu espaço de resistência a partir do seus rituais de curas que diferente da medicina legal, uniformizada e “farmacológica”, os pajés caboclos ou pajés caboclas[2], atuavam junto com os seus guias espirituais, alguns chamados “os caruanas” ou ainda com outros encantados das águas, da terra ou da ar. Benziam, davam banhos de ervas e acolhiam por dias seus pacientes em suas cabanas.

Com a fundação da umbanda no estado do RJ no início do século passado, ela passa se organizar de forma plural e uniforme, também, para com muitas searas que atuavam com as entidades caboclas, só que dessa vez, sofrendo influências do kardecismo no sentido dirimir os princípios morais, éticos ou aética da religião afro-brasileira, seja ela africana ou cabocla. A umbanda nascia tendo como base central a matriz africana (preto velho- orixás) e a matriz indígena (os caboclos).

Contudo, a colcha de retalhos sociais que configuram o mosaico nacional da cultura afro-brasieleira cada vez mais se diversifica e amplia as figuras regionais e representativas, geralmente marginalizadas no decorrer de suas trajetórias. Não à toa, nesse panteão simbólico do índio desbravador e valente e na outra ponta da base do triângulo, o sábio e tolerante preto velho, surgiu o caboclo boiadeiro. Vejam só o que o Reginaldo Prandi (2008) vai dizer: “O boiadeiro é representação mítica do sertanejo nordestino, o mestiço valente do sertão. É o bravo homem acostumado a lidar com o gado e as agruras da seca, símbolo da resistência e determinação” (grifo nosso) (p. 41).  Esse pesquisador, também, vai nos lembrar de outra figura social “o marinheiro” representando aqui o navegante desbravador do mar que num país de viagens de longas distância necessitava desse indivíduo extremamente valoroso. Daí, inicia-se na umbanda o culto dos marinheiros, que pode ainda, representar mobilidade, direcionamento, inovação, capacidade de adaptação em cenários diversos deste importante desbravador. Também, no contexto cultural e social da umbanda é um símbolo de resistência.

A umbanda consegue ainda aglutinar em cenários diversificados e regionais do país em ambientes urbanos, geralmente, periféricos, variados sujeitos sociais, frequentados, especialmente, por negros pobres, ribeirinhos que moram nas cidades, brancos da classe média, dentre outros.

 Sem contar sua capacidade de reunir, como vimos rapidamente acima, num único panteão entidades espirituais de variadas origens. A umbanda se faz assim representante da diversidade ao passo que busca uniformizar a sua divina trindade “caboclos, pretos e erês” a partir de seus papéis rituais, sem contar as outras linhas acopladas nessa pirâmide, a lembrar da linha dos malandros, a linha dos baianos ou sua banda de esquerda, os Exus de lei, masculinos e femininos (as pombas-giras) ainda mais marginalizados que as outras representações arquetípicas da cultura popular brasileira no panteão da Umbanda.

Os exus da Umbanda (ver EXU E A UMBANDA ) não são nem o diabo cristão, nem o orixá EXU do candomblé de matriz africana, na seara umbandista os exus vem regidos por ogum e as pomba-giras pelas Yabas, tratam-se de espíritos desencarnados que tiveram uma vida terrena extremamente desregrada, sem ordem e evolução. É nesse campo de atuação que todos os atores e atrizes sociais de conduta social e moral questionável são alinhados, as prostitutas, os marginais, os adictos, dentre outros, que a partir de sua ascensão “consciencial”, a lembrar aqui o livro esclarecedor “O guardião da meia noite” do grande mestre Rubens Saraceni (1991), atuam na umbanda para libertar os encarnados e desencarnados que padecem destas vicissitudes, aprisionamentos e obsessões.

Ainda no panteão das entidades da esquerda libertária da umbanda, as mulheres exercem um papel fundamental e central fazendo um contraponto de resistência e desmitificando os rótulos criados pelas religiosos das religiões judaicas-cristãs em que colocam as mulheres como perigosas, arruinadoras das vidas dos homens, etc. As famosas pomba-giras ciganas, os exus femininos, vem representar com toda força e calor, as mulheres excluídas, maltratadas, as putas, as bandidas companheiras de amantes de toda sorte, jogadoras de cassino, dentre tantas figuras femininas que viviam na contravenção em vidas passadas. Nesse sentido essas exus atuam muito, além das limpezas e “resgates”, no campo da sexualidade, do amor e no equilíbrio das fantasias humanas, independente de orientação sexual.

Logo, a chamada esquerda da umbanda não é somente o símbolo de resistência dos marginalizados sociais, mas também de inclusão e libertação seja no âmbito da cura espiritual quanto no campo material.

Finalizo este texto com a questão inicial que vos perguntei, a Umbanda é uma religião de resistência? Após estas reflexões que pontuei acredito que podemos dizer com toda segurança que sim. A umbanda é uma religião de resistência.

A umbanda faz parte ainda da luta dos povos de terreiros que desde o decreto federal no. 6.040 de 7 de fevereiro de 2000 reconhece esses povos como comunidades tradicionais que ao longo dos mais de 500 anos de perseguição aos seus ancestrais lutaram praticamente invisíveis pela demarcação dos seus territórios, patrimônio e identidades culturais.

Sendo assim todos os povos de terreiros do Brasil ainda tem uma grande batalha pela frente em defesa dos seus espaços, na prática do seus cultos fora do templo e até mesmo de suas territorialidades perdidas em alguns casos.  O trabalho coordenado pelo PNCSA[3] em que membros da umbanda, da pajelança e afro-religiosos atuaram para realizar sua auto cartografia social ocultada de toda forma pelo espaço do poder é apenas a ponta do iceberg do que ainda precisa ser feito pela luta da garantia do direitos territoriais desses povos. Essa trabalho pioneiro de mapeamento foi de fundamental importância enquanto uma cartografia social e de resistência desses povos.  Eles disseram em seu mapa: sim, existimos no tempo e no espaço. 

É importante nesse sentido que os umbandistas das regiões economicamente mais abastecidas, a exemplo, de SP e RJ, megalópoles do país, olhem para umbanda além de sua caixinha e referências sudestinas, mas que sim realmente possam enxergar a dimensão amazônica da Umbanda, afinal no circuito da evolução, da solidariedade e “caridade” (?) perceber o “outro” faz toda diferença.

Na conjuntura atual em que vive o país sob um golpe judicializado, governado por um homem que representa tudo que é mais excludente e retrógrado em seu caráter racista, LGBTFÓBICO, machista e de total intolerância para com os povos tradicionais, dizer que a UMBANDA É RESISTÊNCIA por tudo que ela representa é se posicionar dignamente em honra de suas bases ancestrais. É mais do que respeitar a memória dos antepassados...é lutar em defesa de seu povo.

SARAVÁ!

Por: Alanna Souto

REFERÊNCIA:

Cartografia Social dos afro-religiosos em Belém do Pará-  Nação Umbanda. PNCSA/IPHAN. 2012.

CUMINO, Alexandre. A história da Umbanda- Uma religião brasileira. Ed.Madras. 2010.

FIGUEIREDO, Aldrin Moura.   Assim como eram os gafanhotos: pajelanças e confrontos culturais na Amazônia no início do século XX. In: MAUÉS, Raimundo Heraldo & MACAMBIRA, Gisela. (Org.). Pajelanças e religiões africanas na Amazônia. Belém: EDUFPA. 2008.

PRANDI, Reginaldo. A dança dos caboclos: uma síntese do Brasil segundo os terreiros afro-brasileiros. In: MAUÉS, Raimundo Heraldo & MACAMBIRA, Gisela. (Org.). Pajelanças e religiões africanas na Amazônia. Belém: EDUFPA. 2008.

SARACENI, Rubens. O guardião da meia noite. Inspirado por Pai Benedito de Aruanda. Ed. Madras. 1991.


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