Introdução
Escrever sobre Benjamin Gonçalves Figueiredo não é apenas
falar do homem e do médium, porque sua vida se mistura com a mensagem e com a
obra de seu mentor espiritual, um dos mais importantes dirigentes espirituais
da Umbanda: o magnífico Caboclo Mirim. Ambos serão para sempre um exemplo
edificante de amor ao próximo e de luta pela dignidade do culto umbandista.
Em um momento histórico-cultural difícil para a Umbanda,
Benjamin Figueiredo foi um dos principais expoentes no movimento pela evolução
do culto e pelo reconhecimento das casas umbandistas junto às autoridades de
seu tempo, estando lado a lado de alguns dos incansáveis guerreiros dos
primeiros anos da nossa querida Umbanda, tais como: Zélio Fernandino de Moraes,
Domingos dos Santos, João Carneiro de Almeida, José Álvares Pessoa, Manoel
Nogueira Aranha, João de Freitas, Cavalcanti Bandeira, Cícero Bernardino de
Melo, Narciso Cavalcanti, Félix Nascente Pinto, Jerônimo de Souza, Henrique
Landi Júnior, Matta e Silva, Tancredo da Silva Pinto, Átila Nunes (pai),
Omolubá, Flavio da Guiné, dentre outros.
Por toda uma vida voltada à unificação dos umbandistas,
Benjamin Gonçalves Figueiredo deixou registrada em nossa memória as lembranças
do incansável líder, do médium admirável de Caboclo Mirim e de Pai Roberto e do
homem cuja integridade e ideais em muito superaram os seus dias, nos trazendo
até os dias de hoje os ecos de uma bela mensagem de fé e de determinação em
tirar a Umbanda da marginalidade a qual esteve relegada pela sociedade
brasileira até meados do século passado.
A Anunciação da Umbanda
Cerca de 20 anos após a Proclamação da República
(15/11/1889), a sociedade brasileira vivia profundas transformações, ainda em
busca de sua personalidade, de sua “brasilidade”.
No mundo das artes, por exemplo, um grupo de artistas
revolucionava a estética e a linguagem na Semana de Arte Moderna de 1922. Esse
sentimento nacionalista viria também a se manifestar na política, com a
ascensão de Getúlio Vargas ao poder, já na década de 1930. Era o fim da
hegemonia da elite agrária e a implantação do Estado Novo.
A característica mestiça da população brasileira passava a
ser valorizada, tida como forma de união da nação. Por essa visão, os vários
grupos raciais ganhavam igual importância na formação da civilização
brasileira. Esta ideologia ajudou na crença de que o preconceito racial não
existia no Brasil. Gilberto Freyre, em seu livro “Casa Grande e Senzala”
(1933), foi um dos intelectuais que deram suporte a tal tese.
Até o samba, manifestação cultural oriunda da cultura negra
brasileira, era redescoberto e reformatado, levado a um universo mais amplo:
brilhava a estrela de Carmem Miranda!
E dentro deste contexto nacional, um fato marcante, para
aqueles que se propõe a estudar as origens da Umbanda, veio a consolidar-se
como o marco inicial da religião: a famosa manifestação do Caboclo das Sete
Encruzilhadas em 1908, através do seu médium Zélio Fernandino de Moraes
(1891-1975), na cidade de Niterói, então capital do antigo estado do Rio de
Janeiro.
A data, 15 de novembro, é a mesma da comemoração da
proclamação da República brasileira. Coincidência? Diante de uma respeitada e
organizada Federação Espírita Brasileira, o Caboclo das Sete Encruzilhadas pôde
deixar registrada a definição do novo movimento religioso: “Uma manifestação do
espírito para a caridade”. Caridade, a principal lei da Umbanda, religião do
amor fraterno em benefício dos irmãos encarnados, qualquer que fosse a cor, a
raça, o credo e a condição social.
Sabe-se que aquela não foi a primeira manifestação mediúnica
de um espírito com perfil de um índio brasileiro, uma vez que desde o final do
século XIX há registro da presença destes em pequenos terreiros, espalhados à
margem da sociedade daqueles dias, as ditas “macumbas cariocas”.
Mas, o advento do Caboclo das Sete Encruzilhadas foi
realmente especial por diversos aspectos.
No início do século XX, “macumba” podia facilmente definir
toda e qualquer relação mediúnica (geralmente promíscua) de curandeiros,
pais-de-santo, feiticeiros, charlatões, e todos aqueles que se dispunham a
intervir junto às forças invisíveis do além apenas em troca de dinheiro e
poder, como bem descreve Paulo Barreto em 1904, sob o pseudônimo de “João do
Rio”, no livro “As Religiões no Rio”, […] “Vivemos na dependência do Feitiço,
dessa caterva de negros e negras de babalorixás e yauôs, somos nós que lhes
asseguramos a existência, com o carinho de um negociante por uma amante atriz.
O Feitiço é o nosso vício, o nosso gozo, a degeneração. Exige, damos-lhe;
explora, deixamo-nos explorar e, seja ele mâitre-chanteur, assassino, larápio,
fica sempre impune e forte pela vida que lhe empresta o nosso dinheiro.”
Daí percebe-se a grandeza da missão do Caboclo das Sete
Encruzilhadas como mensageiro das diretrizes da mais altas esferas da
espiritualidade. Sua presença e sua mensagem eram muito claras: uma nova legião
de entidades iluminadas trabalharia pela elevação moral e espiritual do nosso
povo, sob a inspiração de Cristo-Oxalá.
Era o nascimento da Umbanda!
Benjamin Gonçalves Figueiredo
Desta forma entendemos porque, em 12 de março de 1920, outro
jovem médium viria a ser o veículo de mais um iluminado Mestre, que também se
utilizando da roupagem fluídica de um índio brasileiro, veio ratificar a
mensagem de humildade e caridade da Umbanda.
Vinha ensinar a prática da mediunidade em sintonia e
respeito à natureza e ao livre-arbítrio do praticante, na plenitude da “Escola
da Vida”.
Assim, o Caboclo Mirim se manifestava pela primeira vez
naquele que seria seu companheiro de uma vida: Benjamin Gonçalves Figueiredo
(26/12/1902 – 03/12/1986).
Benjamin Gonçalves Figueiredo, então com dezessete anos,
participava com sua família de sessões espíritas (kardecistas) até que, em
março de 1920, em uma dessas reuniões, o Caboclo Mirim incorporou no jovem
médium e anunciou que aquela seria a última sessão de Kardec realizada por
aquela família e que as próximas passariam a ser de Umbanda, religião apresentada
apenas há pouco mais de dez anos.
A partir de então, toda a família Figueiredo viu-se
envolvida na formação daquele que seria um dos mais importantes núcleos
Umbandistas do Brasil.
Aos 13 dias do mês de março do ano de 1924 considerou-se
fundada a Tenda Espírita Mirim. Desde o início o Caboclo Mirim advertiu que
aquela seria uma organização única no gênero em todo o Brasil, cujo método
seria adotado por outras Tendas, até mesmo em outros Estados da Federação.
De fato, o ritual da Tenda Mirim sempre se destacou no meio
Umbandista por trazer influencias de correntes filosóficas que vão desde o
Ocultismo e a Teosofia ao Espiritismo de Kardec. O Caboclo Mirim aboliu do seu
culto diversos elementos que estavam intimamente ligados à noção de que se tinha
das “macumbas” e feitiçarias reinantes naqueles tempos, bem como alguns outros
também relacionados ao culto católico e à cultura africana, em especial.
Ainda como parte da ruptura com outras religiões, nos
terreiros orientados pelo Caboclo Mirim não se encontravam altares com as
imagens católicas, apenas a de Jesus Cristo situado acima da altura da cabeça
dos médiuns, onde se lia a inscrição “O Médium Supremo”.
Os atabaques foram trocados por enormes tambores (tocados
sentados), toalhas de guarda e as vestes rendadas coloridas, típicas da Bahia,
deram lugar aos brancos uniformes e calçados, sempre sóbrios, como a lembrar a
seus médiuns que todos eram apenas operários da fé, ou melhor, “Soldados de
Oxalá”, como na letra de um belo hino da Tenda Mirim. Nenhum ornamento, nem
guias, colares ou qualquer tipo de ostentação pessoal era aceita. Antes da
abertura dos trabalhos, era até difícil ao visitante reconhecer os dirigentes
dentre os demais médiuns da Casa.
Foi um primeiro passo em busca de uma identidade própria
para a Umbanda, buscando-se dignificar o culto e seus participantes, tendo como
base a organização e a disciplina do conjunto do corpo mediúnico da casa
umbandista.
Percebe-se ainda a nítida influência do movimento
positivista daqueles tempos, através de certa rigidez hierárquica e disciplinar
no terreiro, o que, aliás, atraiu muitos médiuns militares para as fileiras das
casas sob a orientação de Benjamin Gonçalves Figueiredo.
O Caboclo Mirim introduziu também o conceito de graduação
aos seus médiuns em desenvolvimento, com uma classificação própria para cada um
nos trabalhos de atendimento público. Foi, talvez, a primeira Escola de
Formação Iniciática Umbandista!
O novo adepto da religião iniciava seu desenvolvimento
mediúnico na base da pirâmide hierárquica do terreiro, e ia ascendendo nela
conforme em seu próprio ritmo, levando-se em conta a seriedade e a dedicação do
neófito, e sempre de acordo com a intensidade e a qualidade com que seus
próprios Guias trabalhavam junto ao médium.
Com isso, durante o seu desenvolvimento, o médium
exercitaria várias funções dentro dos trabalhos de caridade. A nomenclatura dos
sete graus foi baseada na terminologia da língua Nheêngatú, da antiga raça dos
índios Tupi.
Assim ficaram classificados:
- 1º Grau: Bojámirins – Entidades dos médiuns Iniciantes (I)
- 2º Grau: Bojás – Entidades dos médiuns de Banco (B)
- 3º Grau: Bojáguassús – Entidades dos médiuns de Terreiro (T)
- 4º Grau: Abarémirins – Entidades dos Sub-Chefes de Terreiros (SCT)
- 5º Grau: Abarés – Entidades dos Chefes de Terreiros (CT)
- 6º Grau: Abaréguassús – Entidades dos Sub Comandantes Chefes de Terreiros (SCCT)
- 7º Grau: Morubixabas – Entidades dos Comandantes Chefes de Terreiros (CCT)
A liturgia aplicada nos terreiros também introduzia novos
conceitos à fé umbandista. O Caboclo Mirim sintetizou o tradicional panteão
africano em algumas linhas de trabalho sob a égide de Tupã, o Senhor da criação
na cultura Tupi-Guarani.
Os Orixás evocados nos trabalhos da Tenda Mirim eram: Oxalá,
Oxossi (e Jurema), Ogum, Iemanjá, Oxum, Nanã, Iansã e Xangô. Sempre se evitando
o sincretismo com os santos católicos, principalmente nas curimbas cantadas.
As manifestações mediúnicas davam-se sempre através dos
Caboclos, Preto-Velhos e as Ibeijadas (crianças), e não havia sequer uma
saudação aos Exus e Pomba-Giras, muito menos uma Gira ou sessão própria para o
trabalho destes. Certamente uma atitude que visava ratificar a ruptura da
Umbanda com as populares “macumbas”.
Para muitos, Benjamin Figueiredo parecia ignorar completamente
a existência do “Povo da Rua”, bem como a extensão e a importância dos
trabalhos próprios dessa linha. Benjamin parecia ignorar, perante os olhares
menos atentos. Realmente, nos tempos de Benjamin Figueiredo, as casas ligadas à
Tenda Mirim não faziam Giras próprias de Exu e Pomba-Gira. Mas sua participação
sempre foi fundamental na corrente astral da Casa.
Com um olhar mais apurado observava-se a presença do “Povo
da Rua” auxiliando desde o desenvolvimento dos médiuns iniciantes bem como
trabalhando pesado no descarrego de médiuns e consulentes. Mas sempre de uma
forma extremamente discreta, fosse junto aos Caboclos e Preto-Velhos, fosse
junto à parte do corpo mediúnico denominados “médiuns de banco”.
Essa categoria de médiuns tinha como principal característica
operar sempre sentado e de forma receptiva (ou passiva), em contraponto aos
médiuns de terreiro incorporados com seus Caboclos, que ministravam o passe no
consulente, de forma ativa. Os médiuns de banco se doavam fornecendo ectoplasma
e também auxiliando na dispersão de energias maléficas e/ou miasmas, bem como
na condução de almas sofredoras ou espíritos trevosos (“exunizados”).
Este era o trabalho fundamental das sessões de caridade sob
a orientação do Caboclo Mirim. Daí percebe-se que só com a segurança dos sempre
alertas Exus e Pomba-Giras, em total sintonia e cooperação com as demais
entidades presentes, se alcançava o pleno êxito em cada sessão.
Além das sessões de caridade, outro evento importante sob a
direção do Caboclo Mirim eram as magníficas Giras mensais. Em seu enorme
terreiro (20 x 50 metros), inaugurado em 1942, cerca de dois mil médiuns da
Tenda Mirim, suas filiais e casas coirmãs, confraternizavam com seus Caboclos e
Preto-Velhos em uma só poderosa vibração de amor aos Orixás e à Umbanda.
A partir dos anos 50, com um trabalho já bem consolidado na
sua matriz no Rio de Janeiro, o Caboclo Mirim responsabilizou vários médiuns a
levar as Tendas de Umbanda ao longo de todo território nacional.
A primeira casa descendente da Tenda Mirim foi criada em
30/06/1951, como filial, em Queimados, cidade de Nova Iguaçu. Depois desta,
novas casas foram abertas em Austin, Realengo, Colégio, Jacarepaguá, Itaboraí e
Petrópolis.
A primeira casa descendente do Caboclo Mirim, aberta fora do
Rio de Janeiro foi na cidade de Assai, no Paraná.
Até 1970, já tinham sido abertas 32 casas sob a orientação
de Caboclo Mirim.
A Umbanda fora da marginalidade
Nos primeiros anos da Umbanda, ainda no início do século XX, a repressão ao dito “baixo espiritismo” era bastante intensa.
A Maçonaria, a Umbanda, o Espiritismo de Kardec e
principalmente os cultos afro-brasileiros eram reprimidos com vigor.
Pior ainda durante o período da ditadura Vargas, quando a
polícia agia violentamente, com a justificativa de que a “macumba” tinha
ligações com a subversão, servindo até para dar cobertura a grupos comunistas,
segundo relatos da época.
Uma lei datada de 1934 colocou todos esses grupos sob a
jurisdição do Departamento de Tóxicos e Mistificações da Polícia do Rio de
Janeiro, na seção especial de Costumes e Diversões, que lidava com problemas
relacionados com álcool, drogas, jogo ilegal e prostituição.
Praticar a Umbanda era então uma atividade marginal!
(perdurou com tal classificação até a reorganização do Departamento de Polícia
do Rio, em 1964). Essa mesma lei de 1934 gerou uma situação dúbia: se o
registro na polícia permitia aos terreiros a prática legal, concretamente,
servia para facilitar a ação das autoridades, aumentando a possibilidade de
intimidação e extorsão.
Registrados ou não, os umbandistas e demais praticantes de
cultos afro-brasileiros ficavam expostos à severa perseguição policial do Rio.
Não era difícil ver a polícia invadir e fechar terreiros, confiscando objetos
rituais, e muitas vezes prendendo os participantes. Benjamin Figueiredo, Zélio
Fernandino de Moraes e muitos outros foram presos diversas vezes nesse período.
Mas havia um “modelo” que vinha conquistando seu espaço na
sociedade brasileira: A Federação Espírita Brasileira (FEB), fundada desde 1º
de janeiro de 1884. Nos anos 30, esta já conseguira se firmar como legítima
representante do Espiritismo no Brasil, unificando, fortalecendo e tornando
coesas as casas espíritas. O simbolismo que carrega o vocábulo “federação”,
como ideia de unidade nacional, servia ao discurso da Era Vargas, que naqueles
tempos já via com bons olhos a religião espírita, como mais uma fonte de
pacificação e, principalmente, controle das massas pela elite “branca” da
sociedade.
Tentando se livrar do estigma marginal dos feiticeiros,
iniciou-se um claro movimento por uma auto-identificação dos umbandistas com o
Kardecismo e com o alto espiritismo. O próprio termo Espírita foi usado para
esconder nomes e para disfarçar os praticantes da Umbanda de sua ascendência
afro-brasileira, quase como uma nova forma de sincretismo, tal qual a máscara
católica que as religiões afro-brasileiras se utilizaram nos tempos do
cativeiro. Daí a denominação de tantas Casas umbandistas tradicionais: Tenda
Espírita Mirim, Tenda Espírita Fraternidade da Luz, Tenda Espírita Estrela Guia
da Umbanda, etc.
Os números de São Paulo, apresentados pelo professor de
Sociologia da Religião Lísias Nogueira Negrão (Entre a Cruz e a Encruzilhada.
São Paulo: EDUSP, 1996), são um ótimo exemplo: de 1929 a 1944 o número de
centros espíritas kardecistas registrados em cartórios representava 94% do
total de unidades religiosas registradas, contra apenas 6% das casas declaradas
de Umbanda. Alguns anos depois, no período de 1953 a 1959 (após a
descriminalização), este número já havia se invertido, com 68% de casas de
Umbanda contra 31% de casas kardecistas.
O movimento umbandista ganhava corpo e estruturava-se a fim
de obter o status de religião brasileira.
O exemplo da FEB deve ter parecido a melhor opção para as
lideranças umbandista daqueles tempos. Criar uma federação para negociar com o
Estado a regulamentação da Umbanda, e conseqüentemente o fim da repressão ao
culto, inserindo assim a Umbanda na estrutura do Estado pela via institucional
foi o caminho escolhido. Em 1939 fundou-se a Federação Espírita de Umbanda,
atual União Espírita de Umbanda do Brasil. Zélio de Moraes, Benjamin
Figueiredo, Tancredo Pinto e outros se uniram em torno de um só ideal: tirar a
Umbanda da marginalidade, organizando-a como uma religião coerente e hegemônica
e assim obtendo sua legitimação social.
Esse grupo realizou então o Primeiro Congresso Brasileiro do
Espiritismo de Umbanda em 1941, onde essas lideranças apresentaram suas teses
sobre a religião. A corrente predominante trazia à sociedade uma Umbanda
original e evoluída que existiria desde o oriente, de onde teria se espalhado
para a Lemúria (um lendário continente perdido), e daí para a África, onde
teria degenerado para o feiticismo, forma que teria chegado ao Brasil pelos
escravos negros.
Assim, a influência africana na Umbanda não era negada, mas
olhada como uma corrupção da tradição religiosa original, na sua fase anterior
de evolução.
A defesa da nova definição do termo Umbanda, reflete bem o
pensamento dos intelectuais da religião, unidos naquele primeiro congresso. Ali
surgiu, pela primeira vez, a expressão AUM-BANDHÃ do Sânscrito aume bhanda,
termos que foram traduzidos como “o limitado no ilimitado”, “Princípio Divino,
luz radiante, fonte de vida eterna, evolução constante”. Tal tese, apresentada
pela Tenda Espírita Mirim, é até hoje aceita por diversas correntes
umbandistas.
Alguns estudiosos apontam nessa primeira tentativa de
consolidação da Umbanda forte tendência de desafricanização e embranquecimento
da Umbanda, uma vez que os demais líderes das religiões Afro-Brasileiras foram
excluídos desse encontro histórico. Alegam também que a dita “lavagem branca”
da origem da Umbanda pode ser encontrada em denominações comuns à época, como
umbanda pura, umbanda limpa, umbanda branca e umbanda da linha branca no
sentido de “magia branca”. Termos que contrastavam com magia negra e linha
negra, associados com o mal.
Mas a verdadeira luta de Zélio de Moraes, Benjamin
Figueiredo e seus contemporâneos era pela descriminalização da prática da
Umbanda, o que viria a ser o maior feito daquele Primeiro Congresso.
Em 1944, essas mesmas lideranças umbandistas apresentam ao
então Presidente Getúlio Vargas um documento intitulado “O Culto da Umbanda em
Face da Lei”, conseguindo que o governo brasileiro aprovasse a
descriminalização da nossa querida religião.
Papas & Codificações
Apesar de uma grande vitória, a descriminalização da Umbanda
não foi suficiente para manter unidas as lideranças do movimento, juntas até
então pela legitimação da religião.
Por volta de 1950, essas mesmas lideranças passaram a se
entrincheirar em torno de seus pontos-de-vista pessoais, cada qual defendido
com ardor e paixão, abrindo-se assim um enorme fosso dentre as diversas
correntes umbandistas. Diversas Federações são fundadas no Brasil (só no RJ
foram novas seis).
Com o fim da perseguição das autoridades públicas à Umbanda,
a religião passou por um rápido período de crescimento. Estavam abertas as
portas da Umbanda aos mais diversos grupos que ainda se encontravam
marginalizados, da mesma forma que um dia esta se encontrara. Todos os
terreiros, das mais variadas “linhas”, incluíram em seus nomes a palavra
Umbanda como forma de fugir à repressão policial.
O Primado de Umbanda
Como um dos maiores representantes da corrente umbandista
que liderara o Primeiro Congresso de Umbanda, Benjamin Gonçalves Figueiredo,
presidente da Tenda Espírita Mirim (RJ), também sabia que aquele era o momento
de levar a Umbanda pelo Brasil afora.
Em 1951, a Tenda Mirim já iniciara seu processo de expansão,
abrindo filiais em todo o estado do Rio. Então, visando a expansão em nível
nacional, Benjamin Figueiredo, inspirado por seu mentor Caboclo Mirim, convoca
diversos dirigentes umbandistas a fim de se unirem em torno de um ideal maior:
a codificação da Umbanda. Juntas essas Casas umbandistas fundam, em 03 de
outubro de 1952, no Rio de Janeiro, o Primado de Umbanda.
Idealizado como uma instituição federativa, o Primado visava
o fortalecimento da Umbanda e a maior união e entendimento entre seus
responsáveis e adeptos, procurando estabelecer, o quanto possível, maior
uniformidade nos trabalhos espirituais e práticas do ritual. Destacando-se pela
organização, disciplina e seriedade, e sob a condução de Benjamin, eleito
primeiro Primaz, o Primado de Umbanda cresceu rapidamente, contando com dezenas
de casas filiadas em poucos anos.
O Primado ainda congregaria outros segmentos umbandistas e
apoiaria a organização de um novo Congresso de Umbanda. Neste segundo
Congresso, realizado em 1961 sob a presidência do Sr. Henrique Landi Junior,
novamente debateu-se a codificação da religião e aprovou-se o Hino da Umbanda,
de autoria de J. M. Alves.
Ainda haveria um 3º Congresso, efetivamente realizado em
1973.
Benjamin Figueiredo ainda incentivou a criação do Colegiado
Espiritualista do Cruzeiro do Sul, do Círculo de Escritores e Jornalistas de
Umbanda, e seria o principal fundador da Escola Superior Iniciática de Umbanda
do Brasil, da qual foi Conselheiro Nato.
Também nos anos 50/60, muitos autores apresentam obras
literárias sobre a Umbanda. Além de Benjamin Figueiredo (Okê Caboclo – 1962) e
Tancredo da Silva Pinto, também há livros lançados por Aluízio Fontenele, Byron
Torres, Decelso, Emanuel Zespo, Jota Alves de Oliveira, João Varela, Lourenço
Braga, Oliveira Magno, Samuel Ponze, Silvio Pereira Maciel, dentre outros.
O antagonismo dessas principais correntes gera debates que
afetam os umbandistas até os dias de hoje.
E tal qual naqueles tempos, hoje ainda observa-se que cada
grupo ou organização implanta sua própria “codificação”, tentando influenciar o
movimento umbandista com sua visão e seus ideais, através da mídia escrita, TV
ou Internet.
Mas vale ressaltar que não há verdade absoluta, Centro ou
Tenda melhor ou pior, mais “evoluída” do que qualquer outra. Será sempre
seguindo princípios básicos de amor e, principalmente, respeito ao próximo, que
conseguirá o umbandista ver que, abaixo das pequenas diferenças de culto
exterior, somos todos os “Irmãos de Fé”.
O Legado de Benjamin Figueiredo
A Umbanda, quase 100 anos após a famosa apresentação pública
de Caboclo das Sete Encruzilhadas, ainda é uma jovem religião em busca de sua
afirmação. E merecem o nosso respeito e admiração todos os incansáveis
guerreiros que abriram as primeiras trilhas, que seguiram em caminhos nunca
antes percorridos e que criaram as bases para que, um século depois, pudessem
os umbandistas ter orgulho dos nossos terreiros e de nossos Guias.
Essa foi a grande luta de Benjamin Gonçalves Figueiredo. “A
Umbanda é coisa séria para gente séria”. Assim, Caboclo Mirim anunciava que era
chegado um novo tempo aos verdadeiros umbandistas, era hora de abandonar os
excessos litúrgicos, e de cada um despertar para sua jornada de crescimento
íntimo, sob a luz dos Guias de Aruanda.
Benjamin Figueiredo soube estar à altura de uma obra maior,
orientada pela legítima cúpula espiritual do movimento umbandista.
Sabia que, em seu tempo, seria conhecido como um radical,
pela intransigência que precisaria defender uma Umbanda livre dos grilhões de
feiticeiros e exploradores da fé, das superstições que poluíam as mentes mais
imaturas de alguns fiéis, e principalmente da marginalidade que a sociedade
relegava nossa religião.
Não foi um grande escritor, mas seu exemplo seria seu maior
diferencial. Como médium dedicado de Caboclo Mirim e Pai Roberto, consolidou a
Tenda Mirim e o Primado de Umbanda como verdadeiras Escolas Iniciáticas, provando
que a Umbanda tinha vida própria fora da cultura afro-brasileira.
Alguns o acusaram de “embranquecer” a Umbanda, mas Benjamin
nunca aceitou o ser humano, e suas manifestações sócio-culturais, como algo
estático. Acreditava que tudo evolui, cresce e se desenvolve. É a “Escola da
Vida” trazida por Caboclo Mirim!
Claro que respeitava a cultura negra que tanto enriquece
nossa religião, mas achava dispensável ao culto alguns dos rituais africanos
mais rústicos. Para ele, Umbanda nunca seria lugar para matanças de animais,
“fundangas”, raspagens de cabeça, camarinhas, “recolhimentos” ou “obrigações”
aos Orixás.
O “radicalismo” de Zélio de Moraes, Benjamin Figueiredo e
seus companheiros, permitiu que não predominasse na Umbanda apenas a matriz
africana e a avassaladora cultura Yorubá, da mesma forma que se observa sua
forte presença nos Cultos de Nação. Talvez, sem sua contribuição, a Umbanda
hoje seria apenas uma forma “light” do Candomblé.
Mas, respeitando-se como religiões irmãs, cada qual vem
aprendendo a consolidar sua própria visão do universo, com seus próprios
fundamentos, rituais e, principalmente, sacerdotes.
Assim, a Umbanda pôde consolidar-se como religião
universalista, com espaço para diversas influências que enriqueceram e
fortaleceram os umbandistas, permitindo que observemos em nossos terreiros a
presença da matriz católica, da matriz espírita, da matriz orientalista, etc.
A conclusão que chegamos é que será na busca do equilíbrio,
do “Caminho do Meio”, que a Umbanda crescerá.
Os gregos antigos já nos ensinavam que a temperança, a
prudência e a modéstia, aliadas à moderação e ao bom senso, compõe as condições
indispensáveis a se alcançar um estado de espírito são e calmo (Sophrosyne).
Mas trilhar pelo meio não significa ignorar a energia dos extremos, com sua
força e sua vitalidade. O melhor caminho será encontrado na polarização correta
dessas forças, não na sua anulação. No caminho do meio todos os extremos se
encontram, e nele todos os extremos se apoiam e se fortalecem.
Que os filhos da nossa querida Umbanda reconheçam o conjunto
das forças presentes em sua religião, e possam encontrar em seu equilíbrio a
verdadeira Luz de Aruanda!
Por: Sérgio Navarro Teixeira (Fraternidade Umbandista LUZ DE
ARUANDA - Barra Mansa/RJ – Março de 2008)
Bibliografia:
– BARRETO, Paulo (“João do Rio”). As Religiões no Rio – Editora Nova Aguilar (1976)– BROWN, Diana. Uma história da Umbanda no Rio (Cadernos do ISER. Umbanda & Política. Volume 18) – Editora Marco Zero.– Federação Espírita de Umbanda. Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda. Trabalhos apresentados ao 1º Congresso Brasileiro de Espiritismo de Umbanda, reunidos no Rio de Janeiro, de 19 a 26 de Outubro de 1941.Jornal do Commércio – RJ (1942)– FIGUEIREDO, Benjamin Gonçalves. Okê Caboclo – Editora ECO (1962)– OLIVEIRA, Jota Alves de. Magias da Umbanda – Editora ECO (1970)– DECELSO. Umbanda de Caboclos – Editora ECO (1972)– Primado de Umbanda – Ordenações do Primado de Umbanda– NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a Cruz e a Encruzilhada – Edusp (1996)– TRINDADE, Diamantino Fernandes. Umbanda e sua História – Ícone Editora– JENSEN, Tina Gudrun. Discursos sobre as religiões afro-brasileiras – Da desafricanização para a reafricanização – (traduzido por Maria Filomena Mecabô)– PRANDI, Reginaldo. O Brasil com Axé: Candomblé e Umbanda no Mercado Religioso (2004)– Revista Espiritual de Umbanda nº 06 – Editora Escala (2004)– OLIVEIRA, José Henrique M. As estratégias de legitimação da Umbanda durante o Estado Novo: institucionalização e evolucionismo. (23/05/2006.)– SÁ JUNIOR, Mario Teixeira de. A invenção da alva nação umbandista (Tese de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus Dourados (2004)– ISAIA, Artur César. O Elogio ao Progresso na obra dos Intelectuais de Umbanda – artigo da UFSCDiversos sites da Internet, dentre eles destacamos:– Tenda Espírita Fraternidade da Luz (http://www.tefl.com.br/)– Umbanda – A Proto-Síntese Cósmica (http://www.umbanda.org/)– Círculo dos Irmãos Espiritualista Fé e Caridade (CIEFEC)