No início dos tempos, antes mesmo do mundo ser mundo,
aconteceu no Orum (morada das divindades celestiais iorubás), uma rebelião dos
deuses contra o deus supremo, Olorum. Tendo sua autoridade questionada e
desafiada por seus próprios filhos, Olorum decretou que, a partir daquele
momento, não iria cair mais nenhuma gota de chuva no Aiê (a terra, morada dos
homens).
Desesperados e assolados pela ameaça da seca e da morte, as
divindades decidiram que a única solução para evitar a extinção do Aiê seria
implorar perdão ao pai supremo iorubá. No entanto, o medo de encarar a fúria de
Olorum fez com que os deuses enviassem pássaros até o Orum para entregar o
pedido de desculpas. Pombas, papagaios e águias foram enviados, mas nenhum dos
mensageiros retornou. A última esperança era Oxum, a vaidosa e bela deusa dos
rios, que, cansada da covardia geral, voluntariou-se para ser a embaixadora dos
deuses e falar com o próprio Olorum.
Oxum é bem sucedida em sua missão e traz a chuva de volta ao
Aiê, salvando os humanos e os deuses da destruição. Oxum traz a vitória em seu
seio. No seu seio de mulher.
Na lenda iorubá “Oxum traz a chuva”, o papel de “grande
salvador” cabe à deusa Oxum, personificação feminina dos rios, uma das facetas
de representação da mulher na mitologia africana.
***
Ao contrário de Eva e Maria, principais figuras da
representação no cristianismo, as deusas africanas – cultuadas no candomblé, no
batuque e na Umbanda – nem sempre são previsíveis, puras e obedientes. Tomam
decisões tão múltiplas que não se permite definir um caráter específico para
cada uma delas como, por exemplo, a personalidade servil e virginal de Maria ou
ingrata como Eva. As divindades femininas africanas foram desenhadas de forma
complexa e humana, pendendo sempre entre a heroína virtuosa e a vilã cheia de
vícios, capazes de qualquer artimanha para satisfazer seus desejos – inclusive
os desejos sexuais.
Marlene Terezinha da Silva, 63, viveu a Umbanda desde a sua
infância. Hoje, é uma respeitada mãe de santo. “Nunca tive contato com outra
religião desde que minha tia começou a me levar nos terreiros.”, conta a
senhora baixinha, negra, de olhos brilhantes e fala rápida. Seu pequeno
apartamento é decorado com imagens da África e estátuas de São Jorge e de seu
orixá, Ogum. “O guerreiro apareceu pra mim quando eu era muito nova, acho que
não tinha nem 20 anos. Um dia eu estava arrumando a estante que tinha com as
imagens dos meus orixás quando ouvi Ogum dizer que, a partir daquele momento,
eu era seu instrumento e que sempre que alguém precisasse de alguma caridade,
ele apareceria.”
Segundo Marlene, ser mulher nunca foi um empecilho para que
se tornasse mãe de santo. “Não existe essa coisa de níveis de sacerdócio na Umbanda como há em outras religiões. Eu era só uma devota frequentadora de
terreiros e hoje sou mãe de santo hoje. Não é como na religião católica que tem
que ser diácono, padre ou cardeal. Para ser pai ou mãe de santo, tu precisas
ter três coisas: comprometimento com os teus clientes e com as pessoas que
frequentam a tua sessão, organização e, acima de tudo, o dom”, completa
Marlene.
Ao citar alguns preceitos da Umbanda que eu tinha ouvido
falar, como por exemplo, o fato de pomba-giras não poderem liderar trabalhos
religiosos nos terreiros por terem sido mulheres prostitutas em outras vidas,
Marlene riu da pergunta.“No meu terreiro, pode sim”, ela disse. No meu
terreiro, mulher incorpora pomba-gira ou orixá homem, homem incorpora pomba-gira
ou orixá mulher. A Umbanda não prega essa diferenciação entre homem e mulher.”
Seguindo os rastros da Umbanda na História e de acordo com o
antropólogo Rodrigo Toniol, pesquisador do Núcleo de Estudos em Religião da
URFGS (NER), a Umbanda nasce no Brasil no começo do século XX. Dessa forma, a Umbanda é considerada uma religião extremamente nova se comparada às outras
duas principais religiões brasileiras: o catolicismo e o protestantismo, tendo
a primeira dois mil anos de idade e a outra, quinhentos. No entanto, apesar da
diferença de idade, o que pouco evoluiu no catolicismo e nas correntes
protestantes tradicionais foi o papel legado à mulher.
A exclusão do papel feminino como liderança religiosa não
faz parte da tradição de nenhuma das duas religiões citadas acima. No
catolicismo, por exemplo, mulheres não podem ministrar nenhum tipo de
sacramento e sua relação com o sagrado está fadada à leiguice ou à posição de
freira, inferior ao padre e sem poder como sacerdote. No entanto, na Umbanda a
representação da mulher é diferente: “A visão clássica da Umbanda é tida como o
sincretismo entre o catolicismo, o candomblé e o espiritismo. Sua história
difere muito de outras religiões, tanto territorialmente, uma vez que é uma
crença circunscrita ao território brasileiro, como teologicamente, pois não
possui escritura sagrada como a Bíblia ou o Alcorão, por exemplo”, explica
Rodrigo.
O fato de a Umbanda não possuir nenhum tipo de livro
religioso permite uma interpretação muito mais livre de seus preceitos e
costumes, fazendo com que cada terreiro tenha regras mais específicas ou
liberais do que outros. Dessa forma, determinações como o impedimento da mulher
de participar de cultos menstruada ou grávida, por exemplo, não podem ser
considerados como princípios universais da religião, embora ainda aconteçam.
“Não se pode ser enfático quanto ao corpo feminino tanto na Umbanda, quanto nas
demais religiões afro-brasileiras, sobretudo pela dinâmica das suas doutrinas.
É tudo muito pouco determinístico no sentido de não funcionar a partir de
regras muito fechadas, mas sim ambíguas.”, esclarece o pesquisador.
Após ceder a um convite irresistível de Marlene para
participar do próximo ritual, rimos juntas da minha falta de conhecimento sobre
as pomba-giras e sobre o senso comum que ronda as religiões de raízes
africanas. Ao me servir a terceira xícara de chá, ela me arrebata: “A Umbanda é
muito simples, minha filha. O preconceito dos outros é que complica”.
Por: Mariana Bampi