7 de mar. de 2017

Como foi que nos transformamos em vitrines?


Por: Paulo Ghiraldelli

Há algo errado com quem não tem seu Facebook ou, no mínimo, seu Twitter. Afinal, o que se está querendo esconder ao desaparecer das redes sociais? Que tipo de doença tem essa pessoa que ousa querer preservar sua privacidade num mundo em que todos os prêmios estão voltados para a mulher-vitrine e para o homem-vitrine? É isso mesmo: vivemos a era de desconfiança não mais em relação a quem escancara gostos íntimos e vida privada. Ao contrário, estranhamos quem não queira se comportar como artista de novela ou jogador de futebol, sempre cativos da necessidade de estarem nas revistas de fofocas. Holofotinhos para nós todos.


Em pouco tempo, notamos que a ideia de não-exposição e discrição, cultivada como sendo de bom tom, perdeu a vez. A cisa se inverteu. Quando surgiu o Orkut, as pessoas riam de quem participava. Era ridículo ter um grupo de amigos ou conhecidos, na Internet, que deveriam ver suas revelações particulares, e vir aplaudir – ou então criticar, como ocorreu com o facebook. Em um prazo de menos de vinte anos, todos nós nos transformamos em celebridades e as ditas celebridades se transformaram em verdadeiros frangos a passarinho servidos no jantar. Passaram a ser hipercelebridades que precisam aparecer não só com suas partes íntimas na Playboy. As pessoas comuns mandam “nudes” para amigos e desconhecidos, e as pessoas do palco se obrigam a um show de vulgaridade e comemoração de façanhas sexuais em programas chatérrimos como “Amor e sexo”. Um participante de um “Big Brother Brasil” nunca cansa de dizer: “minha qualidade é a de ser autêntico, estou sendo aqui o mais natural de todos, tenho a função aqui de me expor e farei isso. Você poderão fazer aí de casa um exame ginecológico em mim todos os dias.”

Enganamo-nos facilmente se acreditamos que esse comportamento foi gestado agora, nos tempos contemporâneos. Ele já está indicado no início dos tempos modernos. O Renascimento é o seu berço. Mas, de maneira bastante irônica, ele aparece não na boca de um filósofo conselheiro, mas da Loucura, transformada em personagem. É no Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam, em 1508, que o protótipo do homem-vitrine e da mulher-vitrine são elaborados conceitualmente.

Descartes abre a modernidade dizendo que é mais fácil conhecer o espírito que o corpo, ou seja, enquanto eu pensante estou mais disponível a mim mesmo que a minha ação corporal, minhas funções corpóreas e coisas assim. "Mutatis mutandis" essa posição tem seu equivalente na ideia de Erasmo: “Quem poderá pintar-me com mais fidelidade do que eu mesma? Haverá, talvez, quem reconheça melhor em mim o que eu mesma não reconheço”? (Elogio da Loucura. Erasmo – More. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1988, pp. 8-9). A diferença aí é que se em Descartes quem fala é ele próprio, um homem, um filósofo, quem fala em Erasmo é um personagem, a Dona Loucura. E essa diferença faz toda a diferença, inclusive põe características distintas entre o Renascimento e a Modernidade.

Descartes traz o eu para ser fundamento metafísico, e com isso alimenta a filosofia, mas também circunscreve o que pode vir a ser o self, o que é alcançado por introspecção, e com isso dá passos largos para uma nova psicologia. E um incentivo: esse eu, esse ego, é mais fácil de conhecer do que aquilo que vai ser visto como o mais exterior. Erasmo não está dizendo algo tão diferente, o problema é que este eu que fala, na sua obra, é o Outro da razão, a loucura. Assim, se em Descartes há uma certa continuidade com a história do “conhece-te a ti mesmo”, na linha da razão e da filosofia, em especial o quanto essa expressão se fez útil para Agostinho, em Erasmo o resultado é um contraponto a isso. A Loucura diz: “Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo”. Uma subjetividade renascentista que permite um fluxo contínuo e aberto entre o eu e o ego, entre a primeira pessoa e o self, numa clarificação e transparência do ego e seu alter, que então pode gerar a presunção de que se é aberto o suficiente e, desse modo, colher o auto-elogio senão como algo corriqueiro, como uma constatação de uma evidência. O pudor do auto-elogio desaparece. A exposição de si se torna o comum, até um dever. Mas isso, na conta de Erasmo, não são as celebridades e todos nós enquanto subcelebridades, e sim a fala da Loucura.

É interessante notar que o eu transparente com livre acesso ao si mesmo, de Descartes, seja alguma coisa que abre a modernidade, mas que antes dele, esse tipo de exposição, que conduz ao princípio do “elogia-te a ti mesmo”, tornando desnecessário o “conhece-te a ti mesmo”, esteja posta pelo Ego Louco, na pré-modernidade. É como se Descartes pudesse realmente abrir a modernidade, como de fato fez, mas que Erasmo e o Renascimento olhassem para mais longe, para o nossos tempos contemporâneos. Tempos loucos.

Se voltamos para o próprio Renascimento, deparamo-nos com Montaigne no lado oposto da Loucura. Querendo a paz, a serenidade, o fim da ansiedade, ele não se põe no entretenimento apontado por Pascal, aquele proporcionado pelo coelho caçado ou pelo jogo de bola, mas, antes disso, a um pintar a si mesmo. Todavia, ao pintar a si mesmo, Montaigne não vê o eu verdadeiro como sendo o eu público e muito menos o eu privado. A situação estoica de bem viver vem paradoxalmente por método cético: duvido que se possa encontrar minha verdade em um dos meus eus, o público ou o privado, e o melhor que posso fazer – e isso não é pouco – é manter uma distância mínima entre os dois. O que faço em público não pode ser muito distante do que faço a quatro paredes. Se assim faço, ganho o bem viver.

Ora, mas Montaigne é a figura do Renascimento com um pé na terapia que, depois, na modernidade, ocupará seu espaço. Erasmo não quer terapia, quer alegria, inclusive aquela específica vinda da mistura de ervas especiais com vinho – a da droga. E a alegria desse tipo, ocorre quando a potência da Loucura adentra o ambiente. O auto-elogio é uma loucura. Nietzsche se utilizou dele em Ecce Homo, e realmente foi tomado por vários como já louco, no período desse livro.

Parece que Erasmo sabia que iríamos, um dia, nos encontrar uns aos outros para além do espaço de democratização das relações das cidades renascentistas. Deveríamos abrir outros e maiores espaços, inaugurando uma era mais intensa na escalada de vitrinização que, hoje, exemplificamos com os nossos diversos tipos de mídia. Eliminamos a dicotomia “ser versus ter” para ficarmos com a ideia de que tudo é parecer e aparecer, como escreveu Debord no seu Sociedade do espetáculo. E ao nos tornamos isso, a pura vitrine, o puro acabamento, o rosto nu assume sua nudez como única máscara. Assim, se somos a vitrine e não a loja, não somos mercadoria no sentido tradicional, somos o visível, que também se mercadoriza como visível. Somos antes papel de embrulho e embalagem. Ao estamos vazios, numa subjetividade que volta a ser rasa, temos de preenche-la com a razão que não temos, a razão do coach, do personal X, do psicanalista que substituiu o padre, do apresentador do TV, da balbúrdia da mídia e, principalmente, do consultor. As mulheres jamais abrirão mão do salão de beleza semanal, também um lugar de refazer a vitrine e dar algum conteúdo para a loja vazia da consciência. Eis aí o lugar par excellence do auto-elogio, a atividade da Loucura, retratada por Erasmo.

Vivemos o tempo da consultoria como um tempo da máxima valorização do designer de vitrine. O profissional do futuro: o vitrinista de gente.


Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo, 17/02/2017
Comentários
0 Comentários

Nenhum comentário:

Postar um comentário