Por: Fernando Ribeiro (Pirro D'Obá)
É comum vermos irmãos que são contra o sincretismo entre Orixás e divindades de outros tipos de religiosidade. Muitos afirmam que se a raíz são os Orixás, então não devemos sincretizá-los com Santos católicos, ou signos do zodíaco, ou deuses gregos, romanos e egípcios, ou até com entidades e deuses de outras civilizações xamânicas.
É compreensível que se busque uma unicidade de culto na religião, que se busque uma concreticidade linear dentro da “cosmovisão” que a Umbanda tem a respeito do mundo. Porém antes de tudo. Pergunto: O que mais se faz reluzente na Umbanda, não seria seu próprio caráter universalista?
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Nem em terreiros de uma mesma federação é possível ver a tão sonhada unicidade simbólica que muitos insistem em colocar como padrão. Vemos terreiros com Orixás no congá, vemos terreiros com Santos no congá, vemos também terreiros com Orixás e Santos juntos no congá, enfim. Essa mistura existe como fator sociológico e o ao invés de impor uma visão convicta e padronizadora, não seria melhor tentar entender o porquê desse fato acontecer?
O sincretismo entre Orixás e Santos no Brasil, nós já sabemos de cor e salteado, tratou-se de uma forma que os negros acharam para cultuarem suas divindades de origem de um jeito que não fossem criminalizados pelos colonizadores.
Os jesuítas na tentativa de facilitar o entendimento pedagógico de conversão religiosa diziam que Santa Ana era Nanã, que Oxóssi era São Sebastião, que Oxalá era Jesus. Os negros assimilavam tal informação, participavam do culto católico associando as similaridades entre as duas personalidades, porém não se distanciavam de suas matrizes mitológicas. Em alguns casos, chegaram até a colocar os Otás (Pedra Sagrada) de determinados Orixás dentro das imagens dos santos nas igrejas.
Porém, não é só pela perspectiva histórica que devemos entender o sincretismo. Pois esse processo de sincretizar divindades trata-se também de um método constante do aparelho psíquico humano para adaptar-se as situações.
Não foram só os negros escravizados que fizeram isso, seguimos interligando símbolos semelhantes o tempo todo ao longo da evolução humana, e fazemos isso obedecendo a um mecanismo psicológico que permitiu a nós um melhor entendimento da nossa experiência aqui na Terra. E esse mecanismo psicológico precisa ser levado em conta para quem decide estudar teologia, principalmente a teologia de Umbanda. E talvez, o conteúdo que forneça uma explicação plausível para o fenômeno do sincretismo seja do psicanalista suíço Carl Gustav Jung.
Jung foi o fundador da “psicologia analítica” e pensava a questão do sincretismo por uma ótica muito interessante. Em sua obra colocava a natureza do homem não só como “razão versus instinto”, nem só “imaginação versus sentimento”. Ele via o homem em si habitado por estruturas que caracterizavam sua personalidade, ou seja, uma energia psíquica submetida dentro de um complexo de exigências do “individual” e do “coletivo”.
Dizia ele que somos induzidos na era moderna a colocar a estrutura racional do ser humano a frente de outras estruturas. Ou seja, validamos na modernidade a “consciência” como a matriz constituinte do processo civilizatório e evolutivo da sociedade moderna. Porém, outras estruturas não poderiam ser deixadas de lado quando se tratasse de analisar profundamente o ser humano.
A psique humana precisa ser analisada em sua totalidade, explorando extensivamente os seus sonhos e suas fantasias, esferas essas onde um diálogo é estabelecido entre o que é consciente e os conteúdos do inconsciente. A percepção humana é tida como uma consequência da separação rígida entre essas duas partes, e recuperar dados fundamentais para melhor analisar os fenômenos mentais é necessário num aprofundamento dos mecanismos que os separam e como eles são capazes de se integrarem.
Dessa forma, tanto as estruturas racionais (consciência), e as estruturas tidas como irracionais (inconsciência) tem igual peso no desenvolvimento cognitivo e da personalidade das pessoas. E nessa junção surge o conceito de arquétipo criado pelo psicanalista suíço, incluindo: o ego, a persona, a sombra, a anima (nos homens), o animus (nas mulheres) e o self.
Cada modelo desses determina uma forma de manifestação “consciente/inconsciente” do ser humano de maneira comportamental, social, artística, filosófica, religiosa, etc. É a forma imaterial a qual os fenômenos psíquicos tendem a se moldar obedecendo a certas energias psíquicas inconscientes.
Jung tinha uma vasta experiência psiquiátrica, nos estudos de Freud e no amplo conhecimento das tradições da alquimia, da mitologia e do estudo comparado da história das religiões. Foi arqueólogo no início de sua vida intelectual, e ao longo de seus estudos procurou fazer uma “arqueologia da mente humana”.
Movido pela perspectiva científica da biologia advindas do darwinismo em sua teoria da evolução das espécies e conceito da antropologia comparada, percebeu que o cérebro humano retém informações arquetípicas e impessoais, e seus conteúdos podem se manifestar nos indivíduos da mesma forma que também migraram de seus antepassados ao longo do processo de desenvolvimento da vida. Ou seja, via a mente humana como uma consequência arqueológica, onde mitos, símbolos e arquétipos habitavam e se perpassavam de gerações em gerações formando o que ele chamaria posteriormente de “inconsciente coletivo”, ou seja, a camada mais profunda da psique onde resíduos de traços funcionais da espécie são herdados.
Costuma-se dizer que diferentemente de Freud, Jung via o inconsciente não apenas como um repositório das memórias e impulsos reprimidos do indivíduo, mas também como um sistema passado de geração em geração, vivo e em constante atividade, contendo todo o esquecido e também neoformações criativas organizadas segundo resíduos e funções coletivas e herdadas.
Esses resíduos se manifestam do inconsciente do ser humano dando luz a símbolos comuns. E é dessa forma que podemos explicar como entidades ou deuses com qualidades semelhantes aparecem em civilizações distintas e que nunca se encontraram no tempo e no espaço. Como exemplo, temos as sereias, que podemos encontrar entre a mitologia dos índios, entre os Celtas europeus, entre os gregos, os africanos. Trata-se para Jung de uma personificação arquetípica que surge como algo que foi e está sendo continuamente elaborado a partir das experiências obtidas pelos seres humanos em seu processo inconsciente.
Por essa perspectiva do inconsciente coletivo, precisamos olhar o sincretismo na Umbanda como também uma manifestação simbólica advinda dos indivíduos que carregam a necessidade de acreditar em algo. Essa necessidade de crer é a energia psíquica que traz das profundezas de nosso ser a personificação de imagens e símbolos depositados no nosso inconsciente por eras e no transe (axé) traz as ligações simbólicas que melhor nos aprazerá para entendimento dos conceitos religiosos e espirituais que baseiam a Umbanda.
Existe sim o lado histórico, o contexto social que separa a história mitológica de Jesus e Oxalá. Porém, a estrutura humana faz nascer no simbolismo uma integração entre essas entidades. Se assemelham na experiência do umbandista que entra num processo epifânico da religiosidade.
Muitos costumam dizer que a Umbanda é uma religião dos sonhos, muito por conta desse transe que nasce ao deixarmos a realidade racional de lado para adentrarmos num universo inconsciente. Nesse universo, o inconsciente traz consigo os resíduos herdados de nossa espécie em toda a sua cronologia que perpassa milênios. Sonhos que nossos antepassados tiveram com determinadas coisas da natureza (trovão, tempestades, animais, guerra, paz, harmonia, etc); arquétipos e totens que simbolizavam esses fenômenos; e enfim nas mitologias, lendas e histórias que foram contadas a respeito desses arquétipos e se fixaram no inconsciente através das gerações.
É dessa forma que temos enquadrado em nosso inconsciente coletivo o arquétipo do que é bom ou do que é ruim, do herói e do vilão, do forte e do fraco. E o sincretismo de Santos, Orixás e outras divindades exerce nesse mesmo mecanismo um processo cognitivo e simbólico do ser humano que o auxilia na busca pelo sentido de sua vida, pois atrai experiências relacionadas a sua temática simbólica.
Impossibilitar o umbandista de sincretizar é amordaçar sua liberdade psíquica.
Talvez, a visão Junguiana possa nos ajudar nessa libertação. Que possamos ao máximo extrair desse conceito o néctar que libere ainda mais os resíduos ancestrais que habitam nosso inconsciente. E que possamos através dos arquétipos dos Orixás auxiliar no processo de “individuação” daqueles que os sincretizam com divindades advindas de outras culturas e religiões.
Muito bom esse post, traz novos horizontes e mostra que a ciência tem tudo a ver com a religiosidade.
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