As grandes religiões monoteístas, evidentemente, não são as
únicas a “antecipar” o destino das almas depois da morte. As mesmas
interrogações e as mesmas angústias mobilizam os sistemas de pensamento dos
povos desde os tempos mais remotos. E não poderia ser diferente nas antigas e
complexas civilizações indiana e extremo oriental. Neste artigo, vamos repassar
um pouco dessas tradições, buscando compreender o que elas têm a nos dizer
sobre seus seguidores.
Os Vedas
As primeiras tradições religiosas da índia, fundadas cerca
de 3500 anos antes da era cristã, chegam até nós por meio dos Vedas, que evocam
os ritos sacrificiais a cumprir para fabricar um corpo sutil, luminoso, destinado
a substituir o corpo carnal, denso demais para ir ter com o mundo divino. Os
candidatos às viagens para o céu pertencem as altas castas; são os chamados “nascidos
duas vezes”, porque considera-se que receberão aqui em embaixo, além de sua
existência normal, uma vida suprassensível que permitirá atravessar a morte.
Tendo concluído terrestre, eles encontram Yama, o deus dos mortos, que lhes oferece
“um lugar de repouso todo decorado de dias, de águas e de noites”. Alguns
textos sugerem que o cosmos é constituído por planos superpostos, entre os
quais se repartem diferentes lugares para viver que correspondem a estados de
ser diversificados.
A partir do século VIII antes de nossa era, os Upanixades, textos
que condensam os ensinamentos de novos mestres, fazem uma crítica severa a uma
sobrevida que seria comprada por meio de sacrifícios. Eles distinguem “um lugar
de onde não se volta” e “um lugar onde se nasce de novo”: o tempo cíclico
confina, então, os viventes num círculo do eterno retorno e somente aqueles que
cultivaram a sabedoria são capazes de “passar para a outra margem”.
No curso dos últimos séculos que precedem a era cristã,
desenvolvem-se grandes movimentos devocionais centrados em Vishnu, Shiva e seus
pares femininos. A cremação, concebida como a última etapa de uma existência
ritmada pela execução meticulosa de ritos, distingue-se cada vez mais como
passagem obrigatória para alcançar o céu das divindades. Ao mesmo tempo, a
partir de uma reflexão sobre as consequências morais dos atos, ostenta-se uma
visão dicotômica do além: em função do bom ou do mau carma que acumulou, o defunto
se reveste de um “corpo de fruição” (bhoga-deha), que lhe proporcionará
experiências paradisíacas, ou um “corpo de tormento” (yatana-deha) com o qual
ele conhecerá terríveis sofrimentos.
Nos Puranas, o Céu e o Inferno
Os Puranas, os grandes contos mitológicos do hinduísmo
medieval, ostentam um imaginário incontido do paraíso “svarga” e sobretudo dos
infernos “naraka”. Cada Deus atrai para Si seus virtuosos fiéis, num lugar de
delícias, fresco e luminoso, onde se saboreiam maravilhosas comidas em
companhia das Apsarás, ninfas dançarinas e musicistas, primorosas e pouco
acanhadas.
O mais popular desses paraísos é o de Vishnu, Vaikuntha.
Quanto aos infernos, são sete segundo a lista canônica: Raurava, “o uivador”;
Maharaurava, “o grande uivador; Tamisra, “o tenebroso”; Nikrintana, “o
retalhador”; Apratishta, “o sem apoio”; Asipattravana, “a floresta das folhas
que são espadas”; Taptakumbha, “aquele dos barris em chamas”.
Nenhuma estada nesses lugares é eterna e sempre se volta, no
final de um período definido, para viver de novo. Somente o sábio que, em uma
das vidas, consegue se liberar de todos os vínculos e do sistema do carma
propriamente dito, conhece um estado que ultrapassa a oposição
felicidade-infelicidade. Do mesmo modo, quando morrer seu destino independente
da dicotomia paraíso-inferno, será fundir-se no absoluto, o brâman neutro que
transcende todas as figuras divinas. Assim, para o “liberto vivo”, todas essas
representações do além não passam de um sonho vazio, uma das figuras da ilusão
cósmica amplificada pela angústia da morte.
Buda: Século VI a.c.
É em Kapilavastu, pequena cidade de um distrito montanhoso
do norte da índia, situada a aproximadamente 200 quilômetros da cidade de
Varanasi, que nasce Sidarta Gautama no século VI antes da nossa era. Originário
de uma família abastada da tribo dos Sakya – daí a alcunha de Sakymuni, “sábio
dos sakya” –, que pertencia à casta dos guerreiros ksatrya, a vida do jovem
Sidarta balança quando ele descobre a profunda miséria na qual vivem seus
semelhantes.
Diz a tradição que ele tem, desde a sua juventude, quatro
encontros que perturbarão o curso de sua vida: primeiro, com um senhor idos ,
graças ao qual ele compreenderá o que é a velhice; com um doente, que o levará
a ter consciência do que é a enfermidade; com um cadáver, que lhe permitirá
aprender sobre o que é a morte; e, enfim, com um religioso errante, mendigando
sua comida e em busca da verdade, que lhe mostrará o caminho a seguir.
Nessa época, reina na Índia um politeísmo do qual os
brâmanes são sacerdotes exclusivos. Cada um é persuadido de que a vida sobre a
terra não acaba jamais e de que todos os seres são chamados a renascer, depois
de sua morte, sob formas animais e humanas diversas, mais ou mens
gratificantes, segundo a vontade dos deuses aos quais é preciso oferecer vários
sacrifícios, caso se queira cair em suas graças para evitar renascer em uma
condição pouco reluzente, ou ainda nos infernos, lá onde erram fantasmas
esfomeados. Quando Buda deixa a família e parte ao encontro de seus semelhantes
e em busca da libertação desse encadeamento sem fim das existências, Sidarta
Gautama já casado e tem um filho, Rahula. Para o grande especialista em Buda,
André Bareau, professor no Colège de France, é uma tristeza particularmente
cruel que o impele a realizar tão extremo gesto de ruptura.
Para Sidarta Gautama, a forma sob a qual os homens renascem
após a morte depende de seus atos. Somente aqueles que praticam o bem,
mostrando compaixão pelos seus semelhantes, podem esperar salvação e alcançar o
estado de nirvana, situação de libertação atingida pelo Buda, resultado da
extinção das três raízes do mal que corroem o coração dos os homens: o desejo,
o ódio e a culpa, enquanto os outros são devotados ao interminável ciclo dos
renascimentos e das mortes.
É portanto, em si mesmo que o homem é convidado a encontrar
as chaves de seu destino para um muno melhor.
Pregação às Margens do Ganges
A existência daquele a quem chamamos também de bem-aventurado
transcorre essencialmente na bacia do Ganges, no coração do reino de Mágada,
cuja a hegemonia não cessa de se estender, nessa época, aos principados vizinhos.
Obcecado pela convicção de que a do duhkha governa o mundo dos homens, Gautama começa
a pregar a ascese e o abandono dos prazeres terrestres, uma vez que estes,
sempre passageiros, engendram a inveja e o ódio, provocando uma frustração cada
vez mais insuportável.
Diz a tradição que Sidarta teria descoberto a solução para
os problemas que assombravam seu espírito sob uma figueira, não muito longe da
aldeia Uruvilva. É assim que ele se torna o Iluminado, aquele que possui as Quatro
Verdades: as da dor, da origem da dor, do cessar da dor e, enfim, a do caminho
que leva ao fim da dor, permitindo aos homens alcançar a paz final.
Cada homem é, assim, convidado a se converter e a encontrar
o próprio caminho, a fim de dar um sentido a sua vida terrestre Essa “sabedoria”
se adquire pela meditação, cujas as quatro etapas essenciais destinadas a
purificar o espírito os textos budistas gostam de descrever minuciosamente.
Desde então, o iluminado não cessa de pregar sua doutrina
por todos os lugares, primeiro a alguns
curiosos, depois a discípulos cada vez mais zelosos, entre os quais e encontram
até mesmo antigos brâmanes , cujo número não para de crescer, ao mesmo tempo que
avulta a sua reputação de “homem santo”, a ponto de formarem, já na morte de
Buda, uma comunidade numerosa.
Ele faz seu primeiro grande sermão, chamado também “o movimento
da roda da lei”, para seus cinco primeiros discípulos, num parque próximo a
Varanasi, frequentado pelos ascetas. Desse momento data a fundação de uma ordem
monástica que se espalhará, alguns séculos mais tarde, por toda a Ásia.
Gautama aceita também a ideia de acolher a presença feminina
em sua comunidade, o que constitui uma inovação considerável na sociedade do
norte da Índia, onde as mulheres estão longe de dispor do mesmo status que os homens.
Por volt de 480 a.c.. três meses antes do fim da estação das
chuvas, o Buda falece, com mais de 60 anos, uma idade canônica para a época,
numa modesta aldeia com o nome de Kushinagar.
O budismo, nascido nas margens do Ganges no século V a.c.,
não se interessa num primeiro momento pelo destino depois da morte. O Buda se
recusa a responder as questões de seus discípulos sobre os deuses, a origem do
cosmos ou a forma que pode ter uma eventual imortalidade. Ele apela para que
todo esforço de sabedoria seja para uma análise da situação presente, na vida
atual. O despertar, ou nirvana, não tem nada de um estado paradisíaco: ele concerne
à extinção da ignorância metafísica e à tomada de consciência, por cada um, de
sua “verdadeira natureza de Buda”.
Progressivamente, no entanto, algumas escolas budistas do “Grande
Veículo” Mahayana (uma das duas principais tradições do budismo, sendo a outra
a theravada) representaram de forma bem clara a condição transmigrante de todo
ser vivo: ao longo de uma espécie de escala sem início nem fim, cada um “sobe”
e “desce”, experimentando todas as condições – animal, divina, demoníaca,
humana –, em retribuição da existência que tiver levado. Esses níveis se
tornaram paraísos e infernos supersupostos. Alguns textos distinguem oito “infernos
frios”, oito “infernos quentes”, oito “infernos sombrios” e muitos outros.
Bodisatva, O Ser Iluminado
O sutra do Lótus, por volta do século II, fala do bodisatva –
o ser iluminado, que aceita retardar sua libertação definitiva, renascendo uma
vez mais a fim de mostrar o caminho à humanidade sofredora. O bodisatva Avalokiteshvara,
o “Senhor que enxerga os clamores do mundo”, cheio de compaixão, transformado
em divindade no Tibete, na China, na Coreia e no Japão, possui um paraíso, o
Potala. E o Extremo Oriente, a partir do século XI, investe grandes esperanças
na salvação trazida por Amida, que reina na “Terra pura”, onde ele acolhe seus
devotos.
O budismo tibetano assimilou figuras e símbolos elaborados
pelo xamanismo, dando origem ao Vajrayana. Entidades demoníacas aguardam as
almas, mas o Iamaísmo sempre demonstrou que não passavam de projeções das angústias
e dos desejos dos indivíduos. Segundo o “livro dos mortos”, o defunto passa por
diferentes “bardos”, estados mentais que o levam seja a libertação definitiva,
seja a um novo ensinamento. Esse estado de passagem de uma duração de 49 dias é
uma espécie de “purgatório”.
Taoísmo e Confucionismo
A partir do século VI a.c., desenvolvem-se conjuntamente o
taoísmo e o confucionismo. Confúcio teria declarado não se interessar pelo
destino depois da morte, estando suficientemente ocupado com a busca de uma existência
harmoniosa.
Por isso, muita gente chega a descartar que a tradição possa ser
considerada uma religião, inscrevendo-a como um ensinamento ético e sociopolítico.
A base do confucionismo é a noção do secular como divino, valorizando
particularmente aspectos da vida diária, como a harmonia social e a convivência
em família. A doutrina derruba a contradição entre sagrado e profano e valoriza
os atos humanos, na medida em que os toma como manifestações que vão além do
devir.
Ao contrário, Lao Zi ou Lao-Tsé e seus sucessores, as ideias
de paraíso e de imortalidade vão desempenhar um papel essencial. Para esses
mestres, todos os elementos da natureza possuem uma identidade, que vem de uma única
fonte, o Tao, palavra chinesa cujo sentido se refere a “caminho, trilha,
estrada”. O retorno ao Tao, que levaria à libertação plena da alma, por meio da
meditação e do desapego às coisas materiais, é o elemento básico da doutrina.
Os mestres taoístas sistematizaram práticas psicocorporais
que permitem “viver tanto quanto o céu e a terra”, operando uma transformação alquímica,
graças à regulação da respiração e ao domínio das energias.
Mas o sucesso só vem para aqueles que serão conhecidos como “os
imortais”, que vivem em grutas no fundo das quais caminhos secretos conduzem a
um paraíso onde os seres são hierarquizados, à imagem dos funcionários do Império.
Mais tarde, essas concepções foram difundidas na consciência
coletiva. Hoje, todo defunto pode pretender ser transformado em imortal pelo
rito funerário taoísta, que o salva de uma estada longa demais no purgatório e
pode até mesmo lhe permitir subir diretamente ao céu.
Por: Ysé-Tardan Masquelier
Doutora em Ciência das Religiões
Especialista em Hinduísmo