A antropóloga norte-americana Diana Brown discorda dos que
vêem na umbanda um símbolo do subdesenvolvimento brasileiro. Ela desembarcou no
Rio em 1966 e foi morar numa favela, durante cinco meses, para estudar um
movimento que supunha ser de negros pobres, mas logo descobriu que era uma
iniciativa criada e dominada pela classe média. Pioneira no estudo da umbanda
no Brasil, Brown é professora da Universidade Columbia, em Nova York. Seu livro
"Umbanda - Politics of an Urban Religious Movement", de 1974, não foi
até hoje traduzido para o português. (MB)
FOLHA - Por que decidiu estudar o Brasil e a Umbanda?
DIANA BROWN - A primeira vez em que estive no Brasil foi em
1966. Era aluna de antropologia e fazia o doutorado na Columbia. Naquele tempo,
havia muito interesse pelo Brasil e por cursos com professores como Charles
Wagley and Marvin Harris, que fizeram várias pesquisas no Brasil. Foi assim que
tomei conhecimento pela primeira vez do que chamavam cultos afro-brasileiros.
Eu me interessei, estudei português e li todos os trabalhos que havia na
biblioteca, como Nina Rodrigues, João do Rio, Arthur Ramos, Luiz Costa Pinto,
René Ribeiro, Roger Bastide, Ruth Landes. Naquela época, o departamento de
antropologia da Columbia, como aqueles da maioria das universidades americanas
e brasileiras, estava fortemente influenciada pelo modelo de modernização. Por
esse modelo, as religiões de influência africana deveriam estar em declínio e
desaparecendo no Brasil. Isso porque, supostamente, faziam parte do setor
tradicional ou atrasado da sociedade, que estava se transformando numa
sociedade moderna. Meus professores diziam que eu só encontraria a umbanda nos
setores menos modernizados, mais pobres e menos escolarizados. Por isso, me
orientaram a situar a pesquisa numa favela. Em 1966, consegui uma bolsa da
Fundação Ford e fui morar e estudar a umbanda durante cinco meses no Jacarezinho,
na zona norte, então uma das maiores favelas do Rio. No fim da primeira semana,
me encontrei com um general reformado do Exército que era líder de uma das
federações umbandistas. Cada fio da favela que eu seguia acabava em pessoas da
classe média. Assim, resolvi fazer a pesquisa sobre a classe média na umbanda.
FOLHA - Por que a umbanda, e não o candomblé ou outra religião?
BROWN - Naquele momento, todo mundo se interessava pelo
candomblé e desprezava a umbanda por ter se misturado com outras religiões. O
puro é que era considerado bom e autêntico. Ainda hoje persiste essa idéia.
Alguns colocam o candomblé como cultura popular autêntica e a umbanda como
kitsch. Não concordo com isso, acho que a imagem de autenticidade é uma
construção social. Achei e ainda acho a umbanda autêntica. Os umbandistas me
receberam muitíssimo bem, os acadêmicos não. Alguns diziam: por que você veio
estudar a umbanda, que é um símbolo do nosso subdesenvolvimento? Outra reação
foi a de que a umbanda era uma religião que não valia a pena estudar, que era
folclore. Hoje, a imagem da umbanda mudou, mas nem tanto. Ela ainda carrega
traços dessa vergonha.
FOLHA - Qual era o contexto do surgimento da umbanda?
BROWN - Havia muito preconceito, mas muita gente a
praticava. A imagem era de classe baixa e ignorante. O grupo que começou a
promover a umbanda branca tinha um background kardecista. Eles se achavam, por
isso, protegidos e legitimados. Mas havia muito preconceito e perseguição.
Embora Getúlio Vargas fosse conhecido como "pai dos pobres" e
"pai da umbanda" e, em 1966, muitos terreiros que visitei ainda
tivessem retratos dele, ficou evidente que ele deixou a polícia invadir os
terreiros e foi tudo muito brutal.
FOLHA - Qual o papel do Zélio de Moraes na construção da umbanda?
BROWN - Ele e seu grupo conseguiram promover a imagem dessa
umbanda que foi chamada de umbanda branca. Foi um esforço para embranquecer e
modernizá-la. O papel dele é simbólico, foi o porta-voz dessa "nova"
umbanda.
FOLHA - O fato de ele ter recebido em 1908 o Caboclo das Sete Encruzilhadas significou uma ruptura com o kardecismo?
BROWN - Eu não diria isso. Para ele [Zélio de Moraes] foi
uma ruptura, mas era mais uma expressão do ecletismo que já existia. Foi esse
caboclo quem falou para o Zélio que ele seria o fundador, mas antes já existiam
caboclos e a prática de religiões africanas. Era uma grande mistura.
FOLHA - O Censo 2000 mostrou queda no número de umbandistas.
BROWN - A expansão da umbanda foi impulsionada em parte pelo
tipo de política populista do período antes de 1964. Havia procissões enormes
em Copacabana e grande envolvimento de políticos até o final dos anos 1960. Eu
imaginava que continuaria a crescer. Reginaldo Prandi e outros [estudiosos]
falam que houve um contrabalanço e uma tendência a se africanizar. A imagem de
embranquecimento que eu enfrentei era ambígua: era uma tentativa de se
europeizar e se elitizar. É mais do que [uma questão] racial, era uma metáfora
para a vida moderna. O que significa a África? Eu vejo a africanização também
de maneira ambígua: como uma referência à herança africana e também como uma
metáfora para o exótico, o autêntico e o poder espiritual. As classes médias e
as elites sempre procuram o que consideram "autêntico" na cultura
popular, como o jazz nos Estados Unidos, o samba ou o Carnaval no Brasil, que
começaram entre os setores pobres e foram se transformando em coisas da elite.
FOLHA - Você achava que a umbanda tinha a cara do brasileiro. Ainda acha?
BROWN - Não. Para os fiéis, era uma expressão forte do
nacionalismo cultural. Ela foi promovida, durante um momento muito freiriano
[referência a Gilberto Freire], como a única religião genuinamente brasileira.
Mas esse momento passou, e essa imagem nunca teve âmbito nacional. No âmbito da
cultura popular, o Carnaval define muito mais o brasileiro do que a umbanda.
FOLHA - O que é umbanda?
BROWN - É uma religião que trata com espíritos, que são
muitos e têm a capacidade de intervir na vida cotidiana das pessoas. E podem
intervir para o bem ou para o mal. Os rituais celebram os espíritos, que se
manifestam e conduzem os trabalhos de cura e de orientação para os problemas. A
maioria das pessoas que freqüentam a umbanda foi levada pelo sofrimento. No
campo simbólico, você tem dois grupos subalternos, os índios e os escravizados,
que são celebrados como personagens de alta importância. Há uma mistura com
catolicismo, kardecismo, uma variedade muito grande de práticas, e há sobretudo
uma imagem de caridade. Mas há também os terreiros que trabalham com Exu e que
fazem o que as pessoas querem, para o bem ou para o mal. São a ala menos aceita
pelos umbandistas declarados, mas talvez seja a mais forte.
FOLHA - Você chegou a simpatizar com a umbanda?
BROWN - Eu me criei numa família protestante, mas larguei o
protestantismo e não tenho muita crença. Para mim, a umbanda tem a mesma
validade de outras religiões, talvez um pouquinho mais.
Não posso dizer que acredito nos espíritos, mas
também não posso negar tudo que eu vi acontecer nos terreiros. Seja qual for a
causa, funciona muito bem: ela cura, trata e cuida.
Fonte. Folha de São Paulo -30 de março de 2008