A serpente é um símbolo poderoso em várias religiões. No
judaísmo e no cristianismo, por exemplo, está associada ao mal, por lembrar o
falo e o desejo sexual. No judaísmo, está ligada à transcendência humana pela
ligação com Deus, acima do pecado do comportamento sexual, relacionado a Adão e
Eva.
No cristianismo, a serpente, como símbolo, é menos
empregada. Ela aparece no Evangelho de São Marcos (Capítulo 16, versículos 17 e
18): em que se promete que sinais acompanharão os que acreditarem, um dos quais
“pegarão nas serpentes; e… não lhes fará dano algum”. É exatamente essa
promessa estranha o que justifica o culto à serpente nos EUA – praticado em
mais de 30 congregações diferentes por fundamentalistas que aceitam seus
ensinamentos divinos, se iniciou nas igrejas do Tennessee e Kentucky, se
espalhando pelos estados vizinhos, especialmente a Carolina do Norte e a
Virgínia. Apesar das leis que proíbem esse culto, ele permaneceu na ilegalidade
em alguns Estados norte-americanos.
Alguns índios norte-americanos praticavam uma
dança da serpente, e que povos primitivos ligavam o réptil ao ato de fazer
chover. Mas essa tradição não parece ter influência nessa seita, pois entre os
que se dedicam ao culto da serpente, não se vê qualquer contato com os povos
primitivos que praticavam tal dança. O mais provável é que o uso do animal
tenha a sua origem na interpretação e posterior obediência do texto literal da
Bíblia. Algo que leva a conclusões além da compreensão racional humana.
Simbolismo e magia
Temidas, amadas ou idolatradas… as serpentes acompanham a
trajetória humana desde a origem do mundo. Em várias culturas, diferentes
religiões e crenças, ela se sobrepõe com o seu ar impetuoso, transformador e voluntarioso,
envolvendo quem a vê e elevando seus adoradores aos espíritos superiores. “A
serpente é um elemento poderoso que significa libertação. Seu símbolo é ligado
à transcendência por ser, tradicionalmente, uma criatura do mundo subterrâneo,
portanto, um ‘mediador’ entre dois modos de vida. Esta é uma característica
universal do animal como símbolo de transcendência. Essa criatura vinda, em
sentido figurado, da profundeza da velha Mãe Terra é a manifestação simbólica
do inconsciente coletivo”, diz José Odair da Silva, historiador.
Pintura rupestre de cobra encontrada na Austrália |
O encanto entre os homens e serpentes é mantido desde o
período paleolítico da pré-história. Nessa época, os homens já imprimiam, nas
cavernas, figuras que representavam esses misteriosos seres. Entretanto,
universalmente esse ser carrega o simbolismo da magia e transmutação. “Ela é a
transcendência e representa o caráter particular de uma intuição”, exemplifica
Odair. Para as culturas da pré-história, a serpente era um elo entre o mundo humano e o
espiritual, ela era a passagem, a mutação personificada em seu comportamento
rápido, rasteiro e troca de pele. Todos esses significados foram trazidos para
a nossa cultura e absorvidos por outras. E a eles também foram somados outros
simbolismos e conotações.
Por pertencer ao mundo subterrâneo, a serpente carrega
características benéficas e maléficas ao mesmo tempo. Seus dotes são tão
especiais que alguns povos se vestem como elas para alcançarem o mundo
sobrenatural e, assim, terem uma visão mais aguçada do mundo além-terra. Isso é
o que fazem os xamãs da Sibéria, que usam indumentárias de serpentes e, assim,
adquirem a sua potencialidade.
Para os xamãs, a medicina de cura da serpente está associada
ao poder da transmutação que ergue a vida e cria novas realidades. “É a
mensageira da cura que anuncia a transmutação dos nossos pensamentos. Ela
acontece quando aprendemos uma lição que nossa alma pede”, relata Denis Rojas,
professor de xamanismo. “Com a serpente, abandonamos velhas situações, nosso
ser consegue assimilar lições que precisamos aprender, as quais nos possibilita
passar para um novo estágio na estrada da vida”. A serpente, com seu poder
criativo e regenerador nos faz conhecer valores profundos do nosso ser.
“Pessoas que conseguem liderar multidões pelo fascínio quase hipnótico exercido
sobre elas têm a serpente como sua aliada de poder. Músicos, artistas, grandes
líderes de nações, são alguns exemplos”, assegura Rojas.
A sensualidade também pertence à medicina da serpente. Com
tantos atrativos, os xamãs não são os únicos a aproveitar essa energia. Na
Índia, elas também são veneradas e carregam um simbolismo sexual, como um ser
semidivino, e são chamadas de Nagas. Elas sempre se casam com homens mortais e
só quando traídas se transformam em seres demoníacos. “O fogo serpentíneo é uma
energia que concentra poderosas energias
sexuais e que, quando corretamente direcionada, desperta na pessoa um poder
realizador e criativo sem limites”, explica Rojas.
Os iogues hindus, em seu estado de transe, ultrapassam as
categorias normais do pensamento, pelo poder atribuído à serpente alguns chegam
a descobrir a natureza da morte. Já na África, as serpentes são temidas e
respeitadas, tanto que, quando alguém mata uma cobra píton é queimado vivo. Em
alguns relatos, o explorador Richard Burton presenciou a execução de um matador
de pítons.
Os africanos acreditam que as serpentes são dotadas de um
espírito muito forte e especial, por isso preferem aplacar sua ira, mas jamais
matá-las. Para os guaranis, esse animal é o eixo por onde se ergue o ser
humano, a coluna vertebral. Na sua base, está o poder gerador de vida da Grande
Mãe. Portanto, não é por menos que sua presença é forte também nas superstições
e crenças populares. Uma delas diz que, se uma mulher grávida for assustada por
uma cobra, a criança nascerá com problemas na garganta. Em outra crença
norte-americana, os guizos de uma cascavel, quando colocados na água da
parturiente, facilitarão seu parto. Em algumas regiões da Inglaterra acredita-
se que o couro seco de uma serpente protege a casa contra o fogo.
Poder mitológico
Mas é na mitologia que a serpente possui uma presença
determinante – e em quase todas as culturas sua aparição é fundamental. Elas
podem vir, muitas vezes, como monstros, deusas ou acompanhantes delas. Em
alguns casos, como o de Esculápio, o deus romano da medicina, a serpente
aparece como o seu símbolo. “Trata-se originalmente de uma serpente não venenosa
que vivia em árvores, assim como a vemos, enrolada no bastão do deus da
medicina. Ela parece representar uma espécie de mediação entre a Terra e o
céu”, explica José Odair.
O caduceu, símbolo da medicina, é uma haste onde duas cobras
se entrelaçam ao seu redor. Esculápio, filho de Apolo, fundou a Medicina. Ele
possuía sacerdotes que faziam curas e diagnósticos, inclusive por meio de
sonhos. Aliás Apolo, seu pai, travou uma grande luta contra um
monstro-serpente. Como se vê, ela vaga livremente entre o bem e o mal.
Entre outros povos como os astecas e os maias, a serpente
aparece como o deus Quetzalcoatl, a serpente emplumada. O réptil é uma
combinação com uma ave e representa uma fusão entre o céu e a Terra. Um dos
deuses mais notáveis que também apresenta essa forma é o deus Da – ou Dan de
Daomé, na África, visto como uma serpente que mantém a cauda na boca. Na Índia,
Shiva, uma das mais poderosas divindades hindu, é sempre retratada tendo, a seu
lado, uma naja, símbolo do seu poder de vida e morte (transmutação) sobre todas
as coisas.
Quetzalcoatl, a “serpente emplumada” divindade cultuada pelos astecas e toltecas |
Não podemos nos esquecer das serpentes najas da Índia
antiga, encontramo-las também na Grécia, entrelaçadas no bastão do deus Hermes.
“Existe uma antiga herma (marco de pedra representativo de Mercúrio ou Hermes)
grega com o busto dele, tendo, de um lado, as serpentes entrelaçadas e, do
outro, um falo em ereção”, lembra Odair.
As serpentes também representam o ato sexual, e o falo em
ereção é um motivo sexual, então, podemos tirar conclusões a respeito da
ligação entre serpentes, falo e fertilidade. Assim, o deus Hermes, sendo um
mensageiro, conduz do mundo conhecido para o desconhecido, buscando uma
mensagem espiritual de libertação e de cura. As serpentes podem ser monstros na
mitologia, como é o caso da Medusa. A história dela começa quando era uma bela
mulher e fez amor com Poseidon no Templo de Atenas, que não a perdoou, e então,
resolveu transformá- la em uma criatura pavorosa. Outro monstro-serpente é
Equidna, que é metade mulher e metade cobra. E a Hidra de Lerna, gigantesca,
com muitas cabeças – sendo que cada vez que uma delas era decepada, nascia-lhe
mais duas no lugar. Além disso, Hidra possuía um caranguejo gigante como
escudeiro.
Em outras culturas não são poucos os enredos que envolvem
heróis lutando contra serpentes-monstros. Entre eles, está o deus Seth, do
Egito, que assumiu os atributos de uma serpente-monstro, Tifon, e foi vencido
por Zeus em uma grande batalha. Mais tarde, ficou bem conhecido o episódio onde
Hércules esgana Hidra, a serpente de cem cabeças. E Perseu cortou algumas
cabeças de Medusa. Outros heróis, como o japonês Susanoo, lutou contra uma
serpente de muitas cabeças. Já Singurd, do mito escandinavo, lutou contra a
serpente Fafnir. E o também deus escandinavo, Thor, continua batalhando contra
Midgard, a serpente que se enrosca ao redor do mundo. Aliás, Midgard não é a
única serpente a sustentar o mundo, mas Sesha, a serpente senhor das Nagas,
também o faz enquanto Vishnu dorme em períodos de paz. E claro, nenhuma delas é
maligna.