Somos frutos de uma sociedade “pós-moderna”. Mas o que isso
quer dizer afinal?
Sabemos que a modernidade se trata de um período histórico influenciado
pelo Iluminismo, datado entre meados do século 16 e começo do século 20. Uma
era em que o homem buscou de diversas formas colocar a racionalidade como
elemento influenciador dos processos sociais, políticos, econômicos e filosóficos.
Um período onde as áreas do saber buscaram ramificar e
seguimentar suas descobertas, codificar e catalogar suas perspectivas, e assim romper
com as formatações religiosas que até o período medieval influenciou a rotina
das pessoas. Por esse rompimento, quando tratamos de qualquer área do
conhecimento humano costumamos cunhá-las como: a biologia moderna, química
moderna, física moderna, direito moderno, etc, numa forma de mostrar o impacto
que essa era causou na maneira de enxergarmos o mundo.
Além disso, na modernidade separamos Estado da Igreja, e líderes
religiosos perderam poder político, foram criadas maneiras democráticas de
convívio e o capitalismo se desenvolveu como o sistema econômico vigente.
Pois bem, a modernidade, com todas as suas descobertas causou
um fenômeno específico que o sociólogo Max Weber cunhou de “desencantamento do
mundo”. Esse fenômeno consiste no processo em que as coisas ao redor dos indivíduos
começaram a perder seu sentido mágico. O racionalismo trouxe às pessoas o
sentimento de que tudo enfim teria uma explicação científica e que se algo não tivesse
explicação era porque a ciência ainda não havia encontrado a resposta.
Dessa forma, durante esse período, onde grandes revoluções e
cisões se sucederam, a perspectiva moderna se sustentou na crença de que se usássemos
plenamente as faculdades da razão em todas as áreas humanas, iriamos enfim
acabar com as mazelas existentes no mundo.
Porém, após esse período, vimos que isso
não aconteceu como o previsto pelos iluministas. A razão como “instrumento”
não foi capaz de fornecer apenas o bem a humanidade, e muitas vezes ela pôde
servir a determinadas situações históricas de forma maléfica.
A primeira e a segunda guerras mundiais por exemplo, são eventos
recheados de racionalidade política, econômica, geográfica e principalmente
científica. O desenvolvimento dos armamentos bélicos foi fruto dos avanços tecnológicos
modernos unidos à tendências humanas. Além das grandes guerras, muitos outros
eventos nos servem de exemplo para vermos que nem sempre a razão trouxe só coisas
boas. Os regimes fascistas, as repúblicas autoritárias, a desigualdade social. Podemos
enumerar muitos fatores sombrios, frutos dessa esperança utópica da modernidade.
Entendido assim, a “pós-modernidade” que data o período
contemporâneo, é traçada por um viés mais cético quanto a razão (tão em voga na
era passada). Hoje sabemos que a tecnologia trouxe muitos benefícios para o ser
humano sim, temos a revolução industrial como exemplo expoente disso. Porém, algo que os modernos sempre acreditaram que também iria acontecer, eram
a resoluções ligadas a natureza humana, onde a educação e a promoção dos
conhecimentos tirariam as vendas dos olhos da ignorância, e as pessoas más
ficariam boas ao saber das coisas em sua essência empírica.
Só que nós, “pós-modernos”, sabemos que o conhecimento muitas
vezes potencializaram a ganância das pessoas, a busca por poder se
instrumentalizou e não necessariamente o bem foi enfim o objetivo nisso tudo. A
ciência nas mãos de pessoas mal-intencionadas trouxe e traz muitas dores e angústias
para o homem, e negar isso seria hipocrisia de nossa parte.
O fato é que a razão trouxe muitas coisas, mas, não tirou
da nossa espécie as tendências nocivas que influenciam o ser humano a fazer o
mal contra o semelhante.
Cada sociedade que passou pelo mundo tratou de olhar para a espécie
humana por uma “psicologia” própria, e dessa forma tentou catalogar os impulsos
humanos e entender o que levava determinados indivíduos a cometer certos atos. Mesmo
sociedades mais religiosas, procuraram traçar um estudo sobre a mente e a alma
do homem, entender através de mitos e ditos morais do que enfim se tratavam as inclinações
humanas que podiam ser observadas na maioria dos membros dos grupos.
O termo que mais se destaca dentro dessas abordagens
religiosas é a palavra “pecado”.
Chama-se de pecado, as transgressões de cada povo às regras morais
e civis regimentadas. Os judeus estabeleceram pecados, os islâmicos
estabeleceram pecados, os cristãos estabeleceram pecados, e essa percepção a
respeito dos impulsos humanos é uma herança das crenças abraâmicas. E até
em religiões indianas achamos o pecado sendo interpretado. Lá é utilizada a palavra
“adharma” (contrário de dharma) que significa "vícios", hábitos que se cometidos
com frequência e sem uma busca por lapidação das virtudes podem levar o “atman”
(alma) do ser humano às rodas incessantes do “Samsara”, renascendo nas
situações kármicas até que se consiga lidar com os processos que o estacionam, adquirindo plena ciência das lições a serem aprendidas.
O pecado não é uma invenção cristã a priori. O que cada
religião faz é traçar uma nomenclatura para cada impulso humano observado. A
modernidade, em suma, buscou negar as origens morais das religiões (principalmente
do cristianismo), e no rompimento radical com a religiosidade acabou colocando
os pontos negativos e positivos das crenças num mesmo pacote.
Que o cristianismo teve líderes horríveis, isso não há como
negar, porém, teve também muitos filósofos geniais que trouxeram através de
suas reflexões abordagens profundas sobre a natureza da espécie humana (Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Erasmo, Soren Kieerkgaard, Emmanuel Kant, entre outros). Aliás,
se analisarmos, veremos que todas as religiões têm pessoas boas e ruins, e que
na verdade nunca existiram religiões ruins, mas sim pessoas ruins dentro das
religiões. Mas a modernidade de um modo geral não soube separar as coisas dessa
forma, e tentou colocar todas as religiões num empório negativo de
conhecimento.
Nesse processo radical de negação, muitas sabedorias foram
taxadas, ridicularizadas. Mas, para a teologia, estudar a forma como as
religiões olham os impulsos humanos se faz essencial. E o pecado é um
importante estudo dialético de interpretação dos abismos psicológicos do homem.
Muitos hoje ainda vivem o vício moderno de olhar o pecado como
uma criação religiosa, e isso se procede por nutrirem ressentimento histórico
por atos cometidos pelas igrejas em determinados contextos históricos, o que acaba
servindo de argumento para invalidação de toda filosofia que uma religião
carrega.
Isso faz nascer determinismos insignificantes.
Quando que, o que se faz necessário é entendermos onde está a
origem dos impulsos do homem e quais a suas consequências no mundo.
A ingenuidade da modernidade perante essa questão já era apontada
pelo filosofo alemão Friedrich Nietzsche que dizia :
A beleza do Bem começa no seu respeito pelo Mal e no destino único que os une: os tormentos da liberdade..
Existe uma divisão na filosofia a respeito da real essência
do homem. O homem nasce essencialmente bom ou o homem nasce essencialmente mau?
O homem nasce bom e a sociedade que o corrompe, ou o homem nasce ruim e a
sociedade que é responsável por o educar?
Thomas Hobbes mesmo, pensava a maldade como essencial no homem. Já o
francês Jean Jacques Rousseau pensava a bondade como essencial no homem. O fato
é que a modernidade pendeu para o lado de Rousseau nessa questão e acreditou
plenamente que o homem em sua “bondade” deveria estimular suas virtudes através
da razão e se tornar pleno em suas faculdades, sendo assim se tornaria
essencialmente bom.
Essa questão nunca teve uma resposta enfim na filosofia. Porém, os
resultados da experiência moderna mostraram que a essência maligna do homem ao
longo da história pôde na maioria das vezes mostrar a sua face. Muitos
pensadores afirmam que se a modernidade não tivesse sido tão entusiasta em
relação a razão e não tivesse forçado um rompimento tão agudo com as religiões
talvez tivesse olhado para espécie humana com mais cautela, tivesse visto que a
maldade habita a natureza humana de maneira fisiológica. Albert Camus falou
muito a respeito disso.
O homem nasce com tendências de querer o que é do outro, ou
de sentir infelicidade diante da felicidade do outro. O cristianismo deu ao
nome disso de “inveja”. Não foi a religião que inventou a inveja, ela apenas catalogou,
deu um nome para um fenômeno psicológico da espécie humana. E assim se sucedeu
com uma série de impulsos humanos. A psicanálise fez a mesma coisa, catalogou impulsos
humanos, os chamou de pulsões, ou seja, a energia psíquica e fisiológica interna
que direciona o comportamento dos indivíduos (pulsão sexual, pulsão agressiva, pulsão
de morte).
O homem vive sob tensões desde o seu nascimento, quer aquilo
que não tem, sente fome, sede. Sente frio, calor, tristeza, alegria; agrega ao longo de sua jornada traumas e
neuroses. As religiões sempre souberam das tormentas de nossa espécie, os anciãos mergulharam nessas ranhuras. O próprio
Sigmund Freud sabia disso.
Falar contra o pecado, dizer que ele não existe ou afirmar
que trata-se apenas de uma ideologia religiosa é não ir a fundo na questão antropológica do ser humano. Pois "pecado" é apenas uma terminologia, ou seja, um sistema de
palavras que dão significado a algo. Se você escolhe não usar a palavra pecado, se excluí-la
de seu dicionário, com certeza utilizará outra ligada a uma outra corrente de
pensamento. Você falará em vícios, ou adharmas, ou erros, exageros, etc. O
problema real do termo "pecado" está estritamente relacionado com o ressentimento que muitas pessoas carregam em relação as religiões
abraâmicas de um modo geral.
Na própria bíblia não há menção aos pecados. Os chamados “Pecados Capitais” são originários da alquimia e das tradições iniciáticas muito antigas, remontando dos antigos rituais egípcios e babilônicos que são em número de 7, diretamente relacionados com o avanço espiritual e estando cada um deles associado a um Planeta, de acordo com uma estrutura denominada “Estrela Setenária”.
A Estrela Setenária é um instrumento muito antigo, que segundo algumas tradições, remonta a época dos Caldeus. Existem muitas utilidades para esse símbolo, entretanto, é como ferramenta de autoconhecimento que ela se destaca. Seu uso dentro da magia cristã tem relação com os primórdios do cristianismo, onde os chamados “padres do deserto” utilizavam-na como instrumento meditativo e de autoanálise. Mais tarde, São Tomás de Aquino, desenvolveu um grande trabalho sobre as Virtudes e os Defeitos inerentes aos seres humanos, tornando a Estrela Setenária uma ferramenta indispensável para a jornada espiritual.
Na prática, a Estrela Setenária é um símbolo que relaciona as influências planetárias entre si, é especialmente útil no que tange as Virtudes e Defeitos Capitais, pois mostra de forma gráfica a relação entre eles.
Na Umbanda não se costuma utilizar a palavra pecado, mas se um
indivíduo avança sobre a mulher do próximo, se um indivíduo só sente raiva das
pessoas, se um indivíduo só pensa em bens materiais e não divide nada que
possui, se um indivíduo quer ter poder acima de tudo.. Que nome se dá a essas
características? Sabemos que Exu é a energia que se encarrega da lei do
retorno, porém, quem irá criar uma terminologia umbandista para esses impulsos humanos afinal?
Se excluirmos as palavras avareza, inveja, ira, soberba, vaidade, ganância e
luxúria do dicionário umbandista, fará alguma diferença? Fazer isso seria como
excluir terminologias da psicanálise do dicionário umbandista, ou terminologias
de outras vertentes religiosas. Isso seria impossível, pois as palavras nunca
nascem do nada, sempre são influenciadas por uma cultura enfim.
O que se deve ter cautela, é em não cometer o erro "moderno iluminista" de
tentar romper com a estruturas de um modo geral e nisso acabar por excluir
filosofias valiosas. Santo Agostinho falou sobre pecado assim como falou de
livre arbítrio, ele dizia que a liberdade só existe quando o homem sabe onde
encontram-se suas limitações, que ninguém é perfeito. Mas engraçado seria usarmos o
estudo de livre arbítrio desse grande pensador e excluir suas ideias sobre os
impulsos humanos, o pecado.
Há pessoas que desejam saber só por saber, e isso é curiosidade; outras, para alcançarem fama, e isso é vaidade; outras, para enriquecerem com a sua ciência, e isso é um negócio torpe; outras, para serem edificadas, e isso é prudência; outras, para edificarem os outros, e isso é caridade.
(Santo Agostinho)
A Umbanda, enquanto promotora do livre arbítrio, deve
influenciar as pessoas a olhar para seus impulsos, discerni-los. Isso, não necessariamente
quer dizer que estamos sendo cristãos, mas sim que estamos utilizando de uma das
sabedorias cristãs como instrumento de aperfeiçoamento humano, assim como
fazemos com as perspectivas budistas, ou xamânicas. Não estamos atrás dos déspotas religiosos, mas sim da sabedoria dos anciãos de cada religiosidade.
Excluir dogmas cristãos é perfeitamente entendível; já excluir a sabedoria que as religiões de um modo
geral nos fornecem é um suicídio intelectual. A Umbanda tem fundamento próprio, isso nós temos plena ciência, mas filosoficamente sabemos que ela é
nova. Assim como a modernidade iluminista foi nova também. E por ser nova, a Umbanda (ou os umbandistas) pode cair num
radicalismo exacerbado em relação as outras formas de ver o mundo.
A Umbanda não tem o pecado como fundamento, assim como não tem as ciências humanas (história, psicologia, sociologia, etc) como fundamento, assim como não tem o "adharma" como fundamento, mas ela é universalista, pode utilizar de determinadas terminologias relacionadas a outras cosmologias para explicar com mais profundidade as questões humanas. Isso se chama bom senso...
Referencias
A Umbanda não tem o pecado como fundamento, assim como não tem as ciências humanas (história, psicologia, sociologia, etc) como fundamento, assim como não tem o "adharma" como fundamento, mas ela é universalista, pode utilizar de determinadas terminologias relacionadas a outras cosmologias para explicar com mais profundidade as questões humanas. Isso se chama bom senso...
Referencias
- O mal estar na Civilização - Sigmund Freud
- Se7en, a origem dos Sete Pecados Capitais - Del Debbio