Pouca gente sabe, mas numa das reuniões realizadas na
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Allan Kardec evocou um Espírito que,
segundo as terminologias da cultura brasileira, poderia ser classificado como
um “preto velho”. Esse encontro, narrado pelo próprio Kardec nas páginas da sua
histórica “Revista Espírita” (Revue Spirite), de junho de 1859, aconteceu na
reunião do dia 25 de março de 1859.
Pai César – este o nome do Espírito comunicante – havia
desencarnado em 8 de fevereiro também de 1859 com 138 anos de idade – segundo
davam conta as notícias da época –, fato este que certamente chamou a atenção
do Codificador, que logo se interessou em obter, da Espiritualidade, mais
informações sobre o falecido, que havia encerrado a sua existência física perto
de Covington, nos Estados Unidos.
Pai César havia nascido na África e tinha sido levado para a
Louisiana quando tinha apenas 15 anos.
Antes de iniciar a sessão em que se faria presente Pai
César, Allan Kardec indagou ao Espírito São Luís, que coordenava o trabalho, se
haveria algum impedimento em evocar aquele companheiro recém-chegado ao Plano
Espiritual. Ao que respondeu São Luís que não, prontificando-se, inclusive, a
prestar auxílio no intercâmbio. E assim se fez. A comunicação, contudo, mal
iniciada, já conclamou os participantes do grupo a muitas reflexões. Na sua
mensagem, Pai César desabafou, expondo a todos as mágoas guardadas em seu
coração, fruto dos sofrimentos por que passara na Terra em função do
preconceito que naqueles dias graçava em ainda maior escala do que hoje. E
tamanhas eram as feridas que trazia no peito que chegou a dizer a Kardec que
não gostaria de voltar à Terra novamente como negro, estaria assim, no seu
entendimento, fugindo da maldade, fruto da ignorância humana. Quando indagado
também sobre sua idade, se tinha vivido mesmo 138 anos, Pai César disse não ter
certeza, fato compreensível, como esclarece o Codificador, visto que os negros
não possuíam naqueles tempos registro civil de nascimento, sobretudo os
oriundos da África, pelo que só poderiam ter uma noção aproximada da sua idade
real.
A comunicação de Pai César certamente ajudou Kardec, em
muito, a reforçar as suas teses contra o preconceito, o mesmo preconceito que o
levou a fazer, dois anos depois, nas páginas da mesma “Revista Espírita”, em
outubro de 1861, a declaração a seguir, na qual deixou patente o papel que o
Espiritismo teria no processo evolutivo da Humanidade, ajudando a pôr fim na
escuridão que ainda subjuga mentes e corações: “O Espiritismo, restituindo ao
espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da
inteligência sobre a matéria, apaga naturalmente todas as distinções
estabelecidas entre os homens segundo as vantagens corpóreas e mundanas, sobre
as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor.”
Não obstante, é claro verificar o preconceito que existia da
sociedade européia de fato na época do fato narrado. Não me surpreende também,
o espiritismo, doutrina derivada da sociedade européia vigente daqueles tempos,
e codificada por Kardec, a priori, ter qualquer preconceito com relação a
espíritos que diferissem dos moldes por eles preconizados pela era européia
contemporânea. Ora, não deveria sequer se dar tamanha ênfase nessa comunicação
deveras ordinária por Kardec, haja visto que a única diferença, tratava-se pela
origem humilde e racial do espírito comunicante. Seria de mesmo modo, como se a
Umbanda se maravilhasse quando um espírito de um nobre europeu fizesse
comunicação em uma de suas sessões.
Publicado originalmente no boletim “Serviço Espírita de
Informações” (www.boletimsei.org.br/?wpfb_dl=393), na edição 2090, do ano 2008.