27 de jul. de 2018

As Religiões de Axé - Entre Raízes e Rizomas


Modificar seus hábitos, esquecer as suas tradições, a sua família. Ter de recriá-las em solo novo, desconhecido, distante um oceano inteiro. Essa é a já conhecida fábula ao revés enfrentada pelos escravizados na África que foram trazidos para o Brasil ao longo de séculos de sistema escravista brasileiro. Nesse período, etnias africanas – de muitas, não temos tipo algum de registro, escrito ou oral – foram silenciadas perenemente, hábitos, apagados, modos de pensar, dissolvidos na travessia.

A tradição oral – isto é, o conjunto de saberes e práticas de uma sociedade, transmitidos pelas gerações através da oralidade, ou seja, da experiência coletiva cotidiana ou ritual – foi o veículo que permitiu a esses povos organizar seu planejamento identitário. Se “a oralidade é uma atitude diante da realidade”, todas as suas práticas e as ideias que as fundamentam seguem em direção à ideia de ancestralidade, ou seja, à memória coletiva.

Na língua ioruba, a ideia de afoxé nos traz a relação entre oralidade e ancestralidade. “Que a palavra possa tornar-se realidade”, ou seja: para que possam agir, as palavras devem ser pronunciadas. Para que assim seja, elas encontram o corpo como veículo das ideias. O conhecimento acumulado do grupo fornece o espírito dessas ideias. Logo, a tradição oral se desloca como tradição corporal (corp-oral): o corpo ordena o discurso da tradição através de suas gestualidades, das mínimas às grandiosas, pelos cantos, ruídos e silêncios.

O corpo atravessa o tempo, inscrevendo em si as memórias desses grupos. Ritos de iniciação, de passagem, de continuidade, o trabalho cotidiano, o compartilhamento da história transformam o corpo transitório em repositório do tempo mítico. Porém, uma vez deslocado do seu ambiente coletivo, levado à situação da escravidão, como prosseguir com essas marcas identitárias?

A tradição corporal é profunda, capaz de atravessar tempo e espaço. É assim que o plano religioso se torna o principal canal do reencontro com as origens culturais – as quais nunca se separaram. Irmandades, capoeiras, batuques – onde as etnias se encontravam e negociavam suas tradições – e tantas outras denominações nasciam e se configuravam como novas memórias.


Dentre inúmeras, quero destacar as religiões de axé – candomblés, umbandas e macumbas (na nomenclatura do sudeste). Nesses ambientes de tradição corporal, vamos para além da árvore, da raiz genealógica, incluindo o rizoma de significações, criando uma rede de simbolismos que acolhe, preenche vazios, e define essa memória remanescente, a qual inegavelmente se ligaria cada vez mais à cultura no Brasil, em seus planos ético, étnico e estético.

É do encontro entre bantos – originados de Congo, Angola e Moçambique – e sudaneses – da região norte-ocidental – e de suas tradições corp-orais que os ritos e mitos se amalgamam na religiões de Axé.

A noção de nação, presente no Candomblé, por exemplo, surge como identificação de grandes grupos escravizados em terras africanas. Como afirma Luís Nicolau Parés, as denominações de nações atravessam o oceano, já utilizadas pelos traficantes.

“Nação”, portanto, era e é denominação que congrega grupos étnicos distintos, mas que se aproximam pela língua, por hábitos e por rituais. Dentro do Candomblé, as principais nações conhecidas no Brasil são: congo-angola, jeje e keto/ketu, também conhecida como nagô. Conhecer, mesmo que brevemente alguns de seus conceitos nos ajudará a seguir adiante.

As nações congo, angola, congo-angola, cambinda são representativas dos grupos bantos, ou seja do centro sul de África. Segundo Zeca Ligiéro (Iniciação ao Candomblé, 2006), as culturas bantas tem como características serem dialogantes; é assim que se fundem no campo cultural brasileiro, desde bem cedo. Os bantos no legam “uma tradição tão rica quanto a iorubá, mas ela está presentem sobretudo, nas danças brasileiras, no samba, jongo, capoeira, maculelê”.

É de origem banta o termo candomblé, da língua quicongo-angola: Ka-n-domb-el-e, que é “ação de orar”, substantivo derivado da forma verbal ku-dom-ba ou kulomba: orar, saudar ou invocar. Candomblé significa adoração, louvação e invocação. E, por extensão, o lugar onde as cerimônias são realizadas (Ligiéro, 2006). Sua divindades chamam-se inquices, cuja origem também vem da lígua quicongo, nkisi – no singular; minkisi, no plural.

A ideia de nkisi baseia-se em uma concepção de “universo recíproco”, ou seja, no intercâmbio entre o mundo dos vivos e o dos mortos,  visível e o invisível.

Desse modo, há uma predileção por objetos que catalisem e estabeleçam o vínculo entre esses dois mundos, variando de estátuas de diversos tamanhos, que podem proteger uma cidade, até objetos pessoais, como os balagandãs. Para que o laço entre mundos aconteça nesses objetos, é necessária a manipulação de ervas, terra, palavras e outras substâncias e elementos, por meio dos quais os sacerdotes lhes conferem força e atuação.

A distância entre a chegada de populações bantas (século XVI) e sudanesas (século (XIX) faz com que os candomblés de origem banta internalizem estruturas dos rituais jeje-nagô, com o “frescor” do seu contato com a África, assimilando sua ritualística e cosmogonia (Orixás). Contudo, recentemente podemos observar em alguns terreiros aproximações com a estética religiosa das regiões e rituais bantos em África.

Além disso, o trabalho com as ervas e com a terra aproxima-os dos rituais indígenas. Acredita-se, portanto, que o candomblé congo-angola, através de uma de suas linhas, o candolblé de caboclo, que cultua os antepassados indígenas, tenha dado origem à Umbanda, que herdou o culto aos antepassados pretos-velhos.

Já as nações jeje são representativas do povos sudaneses da etnia fon e ewé, trazidos do reino do Daomé, hoje no Benin. A palavra “jeje” vem do iorubá, significando “estrangeiro”, em uma troca de “gentilezas” – o ewé-fon também nomearam os iorubás de nagôs. Suas divindades chamam-se voduns e sua língua ritual é o gbe.

A ideia de vodum vai além do panteão: vodum é a força presente em objetos e na natureza. Logo, vodum está em uma árvore, no trovão, na doença, mas também em um banco, uma vez que ele pertence a alguém e presentifica sua energia. Por analogia, a casa, um instrumento musical, uma bandeira e até um objeto de oura cultura contem vodum, uma vez que ele catalisa uma ideia/energia. Ou seja, é uma tarefa quase impossível definir um quadro de voduns.

Paré (A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, 2007) lembra que vem da tradição jeje grande parte da estruturação e dos elementos do candomblé. O termo “ogã” (cargo de honra no candomblé keto) vem de oungan (chefe). Ainda, as palavras “peji” (altar), “runcó” (quarto dos iniciados), o nome dos tambores – rum, rumpi e lé – são vocábulos de origem gbe (Parés, 2007).

A nação ketu/nagô, representativa dos povos iorubás, é a mais divulgada midiaticamente, o que resulta em certo silogismo com o todo do candomblé.

Na África, o ambiente cultural iorubá é composto por diversas etnias, na região onde hoje temos a Nigéria, Benin, Togo e Gana. Em documentos datados a partir da metade do século XIX, yoruba passa a determinar toda a Yorubalândia – nome genérico dado a junção das cidades-estado, ou ilês, componentes do reino iorubá.

Eram sociedades plenamente urbanizadas e estratificadas socialmente, o que se refletia em sua estrutura religiosa: o sacerdote Kolá Abímbólá descreve que a cosmologia iorubá inscreve o mundo como sendo dividido em lado esquerdo e lado direito. Ao lado esquerdo pertencem as forças malevolentes, como ikú (morte) e àrùn (doença), entre tantos. Ao lado direito, estão as forças benevolentes: os animais, a natureza, os ènìyan ou humanos, orí (a “cabeça interior”, divindade pessoal dos humanos), os egúngún (ancestrais) e os Orixás.

A relação entre deuses e homens é fundamentada numa mitologia plena de definições acerca da criação do universo, do ser humano e das outras categorias fundamentais da vida, que se expressa em uma dramaturgia narrativo-espiritual cujos personagens mais conhecidos são os Orixás: arquétipos com características emocionais e intelectuais similares às dos seres humanos, mas dotados de poder extraordinário, conferindo-lhes atemporalidade. Kóbá Abímbólá (Yorùbá culture: a philosophical account, 2006) afirma que existem 400 + 1 Orixás (o número 1 indica a infinitude de deuses).
São vivos em forças da natureza ou em mistérios, que não podemos controlar: céu, vento, oceano, rios, cachoeiras, florestas ou matas, plantações, morte, vida, nascimento... habitando não só as suas sedes, mas todas as coisas e seres, incluindo os humanos.

Por isso mesmo, ainda que habitem um espaço diferenciado, o Orun (o plano espiritual), os Orixás transitam ao Ayê (plano físico) ou são presentificados por ritos, adornos, hábitos, danças e cânticos originados pelas narrativas mitológicas. As gêneses dos candomblés de que falo abarcam uma noção de contato e contrato constante, em movimento de resistência e existência cultural, dentro do que era possível fazer diante das interdições sociopolíticas brasileiras. A diáspora forçada se reverte em encontros, diálogos, cruzamentos, deslocamentos e empréstimos entre as tradições.

Sabemos que a mitologia dos Orixás não era um corpo uniforme em todas as cidades iorubanas. Cada ilè/cidade possuía o próprio Orixá relacionado a seu ambiente. Se estamos em Oyó, os habitantes realizam seus rituais para o Orixá Xangô; se em Ijexá, para Oxum; em Ketu, para Oxóssi. Essa heterogeneidade assinala também o desconhecimento de alguns Orixás em certos lugares. Assim, a mesma Oxum que reina em Ijexá está ausente em Egbá, onde Iemanjá é a Orixá regente.

Em terras brasileiras, acontece uma nova configuração, em que os Orixás que resistiram ao tempo e aos navios negreiros são reunidos, ainda incluindo deuses de origem jeje, a família formada por Nanã, Obaluaê (Xapanã), Ewá e Oxumare, que ancora suas funções e se enraíza. Nos candomblés bantos, os inquices encontram esquemas para suas práticas rituais. Em uma estratégia de sobrevivência, evitando o apagamento de suas identidades e tradições, estruturam suas mitologias e ritualísticas: o candomblé reúne em um mesmo ritual todos os arquétipos, deuses e ancestrais. Do mesmo modo, podem ser feitas equiparações entre as divindades -  o que não significa que elas sejam as mesmas, apenas similares – tanto em seus atributos quanto em seus nomes: o Fa jeje e o Ifá nagô são regentes da adivinhação; Matamba inquice e Iansã orixá são as guerreiras dos ventos; Gu e Ogum, da guerra e dos metais; Tempo, Loko e Iroko são seres-árvores.

Esse tráfego de divindades, nomenclaturas e rituais, salienta Parés, mostra que a prática em solo brasileiro tem origem no que já era feito na África. Como diz Reginaldo Prandi, “a nação tribal, o clã, as linhagens e a organização familiar (...) estão para sempre perdidos. Mas isso tudo não impediu o candomblé nascido no Brasil de firmar-se sobre a ideia central da origem mítica da pessoa (...) (Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole, 1991).

Portanto, ainda que saibamos que “o candomblé brasileiro não se assenta sobre estruturas sociais como as de caráter tribal africanas de onde originou-se” (Prandi, 1991), o candomblé realinha o indivíduo com sua memória coletiva através de seus ritos. Os Orixás facultam a substituição da linhagem genética pela poético-ancestral-metafísica: cada indivíduo devotado a um “pai” e uma “mãe” de cabeça ou orí, e a um pai e/ou mãe na terra, os babalorixás e ialorixás, respectivamente.
A estratégia colonial escravagista de incentivar os batuques, unindo as nações, mas com o intuito de alimentar as diferenças entre elas, funciona em parte,  mas não sai como o esperado: o trânsito das tradições e renovações étnicas conduz os candomblés, que se tornam não só um lugar de memória, mas de projeto, onde tudo se encontra, se imbrica e estabelece novas relações; rizomatiza-se para se tornar raiz.

No seu espraiar através do tempo e do território brasileiro, o candomblé se transforma e se renomina: “xangô na região que vai de Pernambuco a Sergipe, de tambor no Maranhão, de batuque no Rio Grande do Sul” (Prandi, 1991), e macumba no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Reginaldo Prandi afirma que, no início do século XX, a “macumba carioca” era comparada aos candomblés do Nordeste, em tentativa de diminuí-lo. Essa posição desconsiderava a experiência da dinâmica das religiosidades urbanas. A macumba era um reflexo da ascendência da população negra do Rio de Janeiro, herdeira principalmente da cultura congo-angola e suas práticas rituais. Portanto, a macumba “poderia ter sido perfeitamente denominada candomblé, desde que se deixassem de lado os modelos dos minoritários candomblés da Bahia, que monopolizaram a atenção dos pesquisadores desde 1980. De todo modo, macumba é termo corrente usado em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Nordeste, quando se faz referência às religiões de Orixás. E é uma autodesignação que já perdeu o sentido pejorativo, como pejorativo foi, na Bahia, o termo candomblé”. (Prandi, 1991)

A macumba do Sudeste também possui seus frutos: a Umbanda, surgida no Rio de Janeirona década de 10 do século XX, que vai reunir as religiosidades africana, indígena, kardecista, católica e urbana. De cunho universalista, a Umbanda vai acolher espíritos de diversas proveniências, em comunidades chamadas de falanges: exus, pombagiras, malandrinhas, crianças ou erês, pretos-velhos, caboclos... incluindo os guias orientais, apropriados da cultura religiosa indiana. O contato com essas entidades vai ao encontro do seu principal objetivo, herança kardecista: a limpeza espiritual e a crença na evolução da alma humana. As entidades da Umbanda, portanto, conversam e aconselham e, em relação a seus iniciados, possuem a responsabilidade de zelar pelo seu campo vibracional.

Além d ome de seus sacerdotes, babalorixá e Ialorixá, a Umbanda herdou os Orixás e alguns ritos do candomblé. Os Orixás foram divididos a princípio em 7 linhas: Oxalá, Omolu, Ogum, Oxóssi, Xangô, Iemanjá; a sétima é a linha das almas, referentes aos pretos velhos, herança banta. Cada ua das linhas possui uma falange de entidades. Portanto, um exu pode ser da linha de Ogum ou da linha de Omolu, e isso caracteriza o campo de vibração em que atua.

Finalmente, como pontos de contato entre essas e muitas nominações, concordamos quando Prandi diz sobre i candomblé, e aqui amplio ao grupo de religiões de axé, que estas são religiões “cujo centro é o rito, as fórmulas de repetição” (As religiões negras no Brasil: para uma sociologia dos cultos afro-brasileiros, 1995). Portanto, a inexorabilidade da corporalidade como realizadora das tradições. Cada conjunto de gestualidades e sonoridades e danças e outros simbolismos pode ser justificado tanto por sua ascendência iorubana quanto congo-angolana, quanto jêje, quanto indígena, quanto urbanas – não podemos esquecer a inserção dos espíritos indígenas, como caboclos, ou urbanos, como as falanges, em algumas nações ou linhagens de candomblé.

Talvez estejam nessas tensões entre as ideias de raiz e rizoma as intenções e extensões das religiões de axé. E os nós da complexidade e diversidade que experimentamos cotidianamente na cultura e sociedade brasileiras.


Por: Tatiana Henrique Silva - Mestre em memória social pela UNIRIO e licenciada em Letras pela UNESA

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