Modificar seus hábitos, esquecer as suas tradições, a sua
família. Ter de recriá-las em solo novo, desconhecido, distante um oceano
inteiro. Essa é a já conhecida fábula ao revés enfrentada pelos escravizados na
África que foram trazidos para o Brasil ao longo de séculos de sistema
escravista brasileiro. Nesse período, etnias africanas – de muitas, não temos
tipo algum de registro, escrito ou oral – foram silenciadas perenemente,
hábitos, apagados, modos de pensar, dissolvidos na travessia.
A tradição oral – isto é, o conjunto de saberes e práticas de uma sociedade,
transmitidos pelas gerações através da oralidade, ou seja, da experiência
coletiva cotidiana ou ritual – foi o veículo que permitiu a esses povos
organizar seu planejamento identitário. Se “a oralidade é uma atitude diante da
realidade”, todas as suas práticas e as ideias que as fundamentam seguem em
direção à ideia de ancestralidade, ou seja, à memória coletiva.
Na língua ioruba, a ideia de afoxé nos traz a relação entre oralidade e
ancestralidade. “Que a palavra possa tornar-se realidade”, ou seja: para que
possam agir, as palavras devem ser pronunciadas. Para que assim seja, elas
encontram o corpo como veículo das ideias. O conhecimento acumulado do grupo
fornece o espírito dessas ideias. Logo, a tradição oral se desloca como
tradição corporal (corp-oral): o corpo ordena o discurso da tradição através de
suas gestualidades, das mínimas às grandiosas, pelos cantos, ruídos e
silêncios.
O corpo atravessa o tempo, inscrevendo em si as memórias desses grupos. Ritos
de iniciação, de passagem, de continuidade, o trabalho cotidiano, o
compartilhamento da história transformam o corpo transitório em repositório do
tempo mítico. Porém, uma vez deslocado do seu ambiente coletivo, levado à
situação da escravidão, como prosseguir com essas marcas identitárias?
A tradição corporal é profunda, capaz de atravessar tempo e espaço. É assim que
o plano religioso se torna o principal canal do reencontro com as origens
culturais – as quais nunca se separaram. Irmandades, capoeiras, batuques – onde
as etnias se encontravam e negociavam suas tradições – e tantas outras
denominações nasciam e se configuravam como novas memórias.
Dentre inúmeras, quero destacar as religiões de axé –
candomblés, umbandas e macumbas (na nomenclatura do sudeste). Nesses ambientes
de tradição corporal, vamos para além da árvore, da raiz genealógica, incluindo
o rizoma de significações, criando uma rede de simbolismos que acolhe, preenche
vazios, e define essa memória remanescente, a qual inegavelmente se ligaria
cada vez mais à cultura no Brasil, em seus planos ético, étnico e estético.
É do encontro entre bantos – originados de Congo, Angola e Moçambique
– e sudaneses – da região norte-ocidental – e de suas tradições corp-orais que os ritos e mitos se
amalgamam na religiões de Axé.
A noção de nação, presente no Candomblé, por exemplo, surge
como identificação de grandes grupos escravizados em terras africanas. Como
afirma Luís Nicolau Parés, as denominações de nações atravessam o oceano, já
utilizadas pelos traficantes.
“Nação”, portanto, era e é denominação que congrega grupos
étnicos distintos, mas que se aproximam pela língua, por hábitos e por rituais.
Dentro do Candomblé, as principais nações conhecidas no Brasil são:
congo-angola, jeje e keto/ketu, também conhecida como nagô. Conhecer, mesmo que
brevemente alguns de seus conceitos nos ajudará a seguir adiante.
As nações congo, angola, congo-angola, cambinda são
representativas dos grupos bantos, ou seja do centro sul de África. Segundo
Zeca Ligiéro (Iniciação ao Candomblé, 2006), as culturas bantas tem como características
serem dialogantes; é assim que se fundem no campo cultural brasileiro, desde
bem cedo. Os bantos no legam “uma tradição tão rica quanto a iorubá, mas ela
está presentem sobretudo, nas danças brasileiras, no samba, jongo, capoeira,
maculelê”.
É de origem banta o termo candomblé, da língua
quicongo-angola: Ka-n-domb-el-e, que
é “ação de orar”, substantivo derivado da forma verbal ku-dom-ba ou kulomba:
orar, saudar ou invocar. Candomblé significa adoração, louvação e invocação. E,
por extensão, o lugar onde as cerimônias são realizadas (Ligiéro, 2006). Sua
divindades chamam-se inquices, cuja origem também vem da lígua quicongo, nkisi – no singular; minkisi, no plural.
A ideia de nkisi
baseia-se em uma concepção de “universo recíproco”, ou seja, no intercâmbio
entre o mundo dos vivos e o dos mortos,
visível e o invisível.
Desse modo, há uma predileção por objetos que catalisem e
estabeleçam o vínculo entre esses dois mundos, variando de estátuas de diversos
tamanhos, que podem proteger uma cidade, até objetos pessoais, como os balagandãs.
Para que o laço entre mundos aconteça nesses objetos, é necessária a
manipulação de ervas, terra, palavras e outras substâncias e elementos, por
meio dos quais os sacerdotes lhes conferem força e atuação.
A distância entre a chegada de populações bantas (século
XVI) e sudanesas (século (XIX) faz com que os candomblés de origem banta
internalizem estruturas dos rituais jeje-nagô, com o “frescor” do seu contato
com a África, assimilando sua ritualística e cosmogonia (Orixás). Contudo, recentemente
podemos observar em alguns terreiros aproximações com a estética religiosa das
regiões e rituais bantos em África.
Além disso, o trabalho com as ervas e com a terra
aproxima-os dos rituais indígenas. Acredita-se, portanto, que o candomblé congo-angola,
através de uma de suas linhas, o candolblé de caboclo, que cultua os antepassados
indígenas, tenha dado origem à Umbanda, que herdou o culto aos antepassados pretos-velhos.
Já as nações jeje são representativas do povos sudaneses da
etnia fon e ewé, trazidos do reino do Daomé, hoje no Benin. A palavra “jeje”
vem do iorubá, significando “estrangeiro”, em uma troca de “gentilezas” – o ewé-fon
também nomearam os iorubás de nagôs. Suas divindades chamam-se voduns e sua língua
ritual é o gbe.
A ideia de vodum vai além do panteão: vodum é a força
presente em objetos e na natureza. Logo, vodum está em uma árvore, no trovão,
na doença, mas também em um banco, uma vez que ele pertence a alguém e
presentifica sua energia. Por analogia, a casa, um instrumento musical, uma bandeira
e até um objeto de oura cultura contem vodum, uma vez que ele catalisa uma
ideia/energia. Ou seja, é uma tarefa quase impossível definir um quadro de
voduns.
Paré (A formação do Candomblé: história e ritual da nação
jeje na Bahia, 2007) lembra que vem da tradição jeje grande parte da
estruturação e dos elementos do candomblé. O termo “ogã” (cargo de honra no candomblé
keto) vem de oungan (chefe). Ainda, as palavras “peji” (altar), “runcó” (quarto
dos iniciados), o nome dos tambores – rum, rumpi e lé – são vocábulos de origem
gbe (Parés, 2007).
A nação ketu/nagô, representativa dos povos iorubás, é a
mais divulgada midiaticamente, o que resulta em certo silogismo com o todo do
candomblé.
Na África, o ambiente cultural iorubá é composto por
diversas etnias, na região onde hoje temos a Nigéria, Benin, Togo e Gana. Em
documentos datados a partir da metade do século XIX, yoruba passa a determinar toda a Yorubalândia – nome genérico dado a junção das cidades-estado, ou ilês, componentes do reino iorubá.
Eram sociedades plenamente urbanizadas e estratificadas
socialmente, o que se refletia em sua estrutura religiosa: o sacerdote Kolá
Abímbólá descreve que a cosmologia iorubá inscreve o mundo como sendo dividido
em lado esquerdo e lado direito. Ao lado esquerdo pertencem as forças
malevolentes, como ikú (morte) e àrùn (doença), entre tantos. Ao lado direito,
estão as forças benevolentes: os animais, a natureza, os ènìyan ou humanos, orí
(a “cabeça interior”, divindade pessoal dos humanos), os egúngún (ancestrais) e
os Orixás.
A relação entre deuses e homens é fundamentada numa mitologia
plena de definições acerca da criação do universo, do ser humano e das outras
categorias fundamentais da vida, que se expressa em uma dramaturgia
narrativo-espiritual cujos personagens mais conhecidos são os Orixás:
arquétipos com características emocionais e intelectuais similares às dos seres
humanos, mas dotados de poder extraordinário, conferindo-lhes atemporalidade.
Kóbá Abímbólá (Yorùbá culture: a philosophical account, 2006) afirma que
existem 400 + 1 Orixás (o número 1 indica a infinitude de deuses).
São vivos em forças da natureza ou em mistérios, que não
podemos controlar: céu, vento, oceano, rios, cachoeiras, florestas ou matas,
plantações, morte, vida, nascimento... habitando não só as suas sedes, mas
todas as coisas e seres, incluindo os humanos.
Por isso mesmo, ainda que habitem um espaço diferenciado, o
Orun (o plano espiritual), os Orixás transitam ao Ayê (plano físico) ou são
presentificados por ritos, adornos, hábitos, danças e cânticos originados pelas
narrativas mitológicas. As gêneses dos candomblés de que falo abarcam uma noção
de contato e contrato constante, em movimento de resistência e existência
cultural, dentro do que era possível fazer diante das interdições
sociopolíticas brasileiras. A diáspora forçada se reverte em encontros,
diálogos, cruzamentos, deslocamentos e empréstimos entre as tradições.
Sabemos que a mitologia dos Orixás não era um corpo uniforme
em todas as cidades iorubanas. Cada ilè/cidade possuía o próprio Orixá
relacionado a seu ambiente. Se estamos em Oyó, os habitantes realizam seus
rituais para o Orixá Xangô; se em Ijexá, para Oxum; em Ketu, para Oxóssi. Essa
heterogeneidade assinala também o desconhecimento de alguns Orixás em certos lugares.
Assim, a mesma Oxum que reina em Ijexá está ausente em Egbá, onde Iemanjá é a
Orixá regente.
Em terras brasileiras, acontece uma nova configuração, em
que os Orixás que resistiram ao tempo e aos navios negreiros são reunidos,
ainda incluindo deuses de origem jeje, a família formada por Nanã, Obaluaê
(Xapanã), Ewá e Oxumare, que ancora suas funções e se enraíza. Nos candomblés
bantos, os inquices encontram esquemas para suas práticas rituais. Em uma
estratégia de sobrevivência, evitando o apagamento de suas identidades e
tradições, estruturam suas mitologias e ritualísticas: o candomblé reúne em um
mesmo ritual todos os arquétipos, deuses e ancestrais. Do mesmo modo, podem ser
feitas equiparações entre as divindades -
o que não significa que elas sejam as mesmas, apenas similares – tanto em
seus atributos quanto em seus nomes: o Fa jeje e o Ifá nagô são regentes da adivinhação;
Matamba inquice e Iansã orixá são as guerreiras dos ventos; Gu e Ogum, da
guerra e dos metais; Tempo, Loko e Iroko são seres-árvores.
Esse tráfego de divindades, nomenclaturas e rituais,
salienta Parés, mostra que a prática em solo brasileiro tem origem no que já era
feito na África. Como diz Reginaldo Prandi, “a nação tribal, o clã, as
linhagens e a organização familiar (...) estão para sempre perdidos. Mas isso tudo
não impediu o candomblé nascido no Brasil de firmar-se sobre a ideia central da
origem mítica da pessoa (...) (Os candomblés de São Paulo: a velha magia na
metrópole, 1991).
Portanto, ainda que saibamos que “o candomblé brasileiro não
se assenta sobre estruturas sociais como as de caráter tribal africanas de onde
originou-se” (Prandi, 1991), o candomblé realinha o indivíduo com sua memória
coletiva através de seus ritos. Os Orixás facultam a substituição da linhagem
genética pela poético-ancestral-metafísica: cada indivíduo devotado a um “pai”
e uma “mãe” de cabeça ou orí, e a um pai e/ou mãe na terra, os babalorixás e
ialorixás, respectivamente.
A estratégia colonial escravagista de incentivar os batuques,
unindo as nações, mas com o intuito de alimentar as diferenças entre elas,
funciona em parte, mas não sai como o
esperado: o trânsito das tradições e renovações étnicas conduz os candomblés,
que se tornam não só um lugar de memória, mas de projeto, onde tudo se
encontra, se imbrica e estabelece novas relações; rizomatiza-se para se tornar
raiz.
No seu espraiar através do tempo e do território brasileiro,
o candomblé se transforma e se renomina: “xangô na região que vai de Pernambuco
a Sergipe, de tambor no Maranhão, de batuque no Rio Grande do Sul” (Prandi,
1991), e macumba no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Reginaldo Prandi afirma que, no início do século XX, a “macumba
carioca” era comparada aos candomblés do Nordeste, em tentativa de diminuí-lo.
Essa posição desconsiderava a experiência da dinâmica das religiosidades urbanas.
A macumba era um reflexo da ascendência da população negra do Rio de Janeiro,
herdeira principalmente da cultura congo-angola e suas práticas rituais.
Portanto, a macumba “poderia ter sido perfeitamente denominada candomblé, desde
que se deixassem de lado os modelos dos minoritários candomblés da Bahia, que
monopolizaram a atenção dos pesquisadores desde 1980. De todo modo, macumba é
termo corrente usado em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Nordeste, quando se
faz referência às religiões de Orixás. E é uma autodesignação que já perdeu o
sentido pejorativo, como pejorativo foi, na Bahia, o termo candomblé”. (Prandi,
1991)
A macumba do Sudeste também possui seus frutos: a Umbanda,
surgida no Rio de Janeirona década de 10 do século XX, que vai reunir as
religiosidades africana, indígena, kardecista, católica e urbana. De cunho universalista,
a Umbanda vai acolher espíritos de diversas proveniências, em comunidades
chamadas de falanges: exus, pombagiras, malandrinhas, crianças ou erês,
pretos-velhos, caboclos... incluindo os guias orientais, apropriados da cultura
religiosa indiana. O contato com essas entidades vai ao encontro do seu
principal objetivo, herança kardecista: a limpeza espiritual e a crença na
evolução da alma humana. As entidades da Umbanda, portanto, conversam e
aconselham e, em relação a seus iniciados, possuem a responsabilidade de zelar
pelo seu campo vibracional.
Além d ome de seus sacerdotes, babalorixá e Ialorixá, a
Umbanda herdou os Orixás e alguns ritos do candomblé. Os Orixás foram divididos
a princípio em 7 linhas: Oxalá, Omolu, Ogum, Oxóssi, Xangô, Iemanjá; a sétima é
a linha das almas, referentes aos pretos velhos, herança banta. Cada ua das
linhas possui uma falange de entidades. Portanto, um exu pode ser da linha de
Ogum ou da linha de Omolu, e isso caracteriza o campo de vibração em que atua.
Finalmente, como pontos de contato entre essas e muitas
nominações, concordamos quando Prandi diz sobre i candomblé, e aqui amplio ao grupo
de religiões de axé, que estas são religiões “cujo centro é o rito, as fórmulas
de repetição” (As religiões negras no Brasil: para uma sociologia dos cultos
afro-brasileiros, 1995). Portanto, a inexorabilidade da corporalidade como
realizadora das tradições. Cada conjunto de gestualidades e sonoridades e
danças e outros simbolismos pode ser justificado tanto por sua ascendência
iorubana quanto congo-angolana, quanto jêje, quanto indígena, quanto urbanas –
não podemos esquecer a inserção dos espíritos indígenas, como caboclos, ou
urbanos, como as falanges, em algumas nações ou linhagens de candomblé.
Talvez estejam nessas tensões entre as ideias de raiz e
rizoma as intenções e extensões das religiões de axé. E os nós da complexidade
e diversidade que experimentamos cotidianamente na cultura e sociedade
brasileiras.
Por: Tatiana Henrique Silva - Mestre em memória social pela UNIRIO
e licenciada em Letras pela UNESA