22 de dez. de 2016

Filosofia & Religião – Não estamos lidando com irmãos siameses?


Voltaire foi talvez o filósofo que mais propagou e incompatibilidade entre filosofia e religião. Todavia, sabemos bem que, a quatro paredes, dizia que sem a religião a população seria ingovernável. De lá para cá a modernidade fez da religião, quando em contato com a filosofia, uma adversária, talvez inimiga. Perdeu-se o ideal de Agostinho, Boécio e Anselmo. Para estes, a religião não era uma venda nos olhos, mas exatamente o oposto, uma luz para conduzir a investigação em busca do melhor conhecimento.

Esse entendimento da religião, hoje, é difícil de ser explicado, tamanho o movimento que a modernidade fez, pela boca de voltairianos de todos os matizes – até mesmo Marx! – no sentido de opor as luzes da fé às luzes da razão. Mas para quem não é neófito (novato) em filosofia, uma certa comparação pode fazer pensar. Basta lembrar dos recados das musas para Parmênides. O que disseram? 

Primeiro: o que É, “É”, o que “não é”, “não é”. 

Segundo: o caminho do “que é”, é possível, o caminho do que “não é”, claro, não é possível. Afinal, o que seria investigar o “não é”? 

Terceiro: o que escapa ao “que é” e ao que “não é”, pode ser chamado de simples non-sense. 

Ora, quando Parmênides se deu conta dessa ontologia casada com a lógica, ele sentiu que havia mesmo recebido um recado divino. Para nós, preceitos lógicos parecem naturais. Para ele, tratava-se de um achado divino para entender o mundo e o pensar. Ganhar o aviso divino do quanto seria bobagem voltar os olhos para o que não é e para o non sense – isso lhe foi espantoso! 

Os recados dos filósofos cristãos nunca disseram outra coisa senão algo análogo ao recado das musas para Parmênides: a luz da fé nos dá o que é, então, podemos seguir por aí de modo a não gastarmos nosso tempo com os caminhos fechados, do que não é, ou tolos, do non sense. Uma estrada iluminada é um campo de investigação, mas a parte não iluminada, as beiradas da estrada, não devem ser contadas como lugar de investigação – não são, ou simplesmente são o sem sentido.

Quando o estudante de filosofia compreende essa ligação entre a “ontologia católica” e a “ontologia parmenídica”, ele entende a razão pela qual não foi difícil para o cristianismo produzir uma quantidade grande de filósofos, todos eles estudiosos da filosofia grega. A fé que dá o campo de investigação da razão é perfeitamente um recado prudente, de bom senso. Anselmo consagrou tal preceito na fórmula: “não quero saber para crer, mas crer para saber”. Em outras palavras: não quero investigar às cegas, tateando, sem hipóteses, e sim com diretrizes em que posso crer, para seguir adiante sem me preocupar em ter pego um caminho que não é um caminho, ou um caminho tolo. 

De certo modo, ao iniciar uma investigação conjunta, a do elenkhós, Sócrates pedia a mesma coisa de seu interlocutor ou parceiro de investigação: diga-me o que acredita nesse assunto, verdadeiramente, sinceramente. Só então, ao ter uma crença firme, iniciava-se a colocação de outras afirmações, num processo contínuo de depuração por levantamento de contradições. Quem faria diferente?

Quando iniciamos uma indagação, quantas coisas antes não temos que simplesmente crer? Quando Renê Descartes iniciou pela dúvida e a fez hiperbólica, não lhe foi fácil colocar em dúvida o conteúdo do pensamento e da imaginação. Só mesmo imaginando um Deus louco, enganador, seria possível não ter certeza de coisa alguma, teve de admitir ele. Um Deus louco seria aquele Deus que viesse a dizer: “pesquise no que não é, ou no sem sentido”.

Cada um de nós, filósofos, temos que cotidianamente repensarmos nossa relação com a religião, num gesto de humildade intelectual necessário.


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