28 de set. de 2015

O que é a Humildade?








O que é a humildade? Trata-se de um sentimento e um comportamento que, como o entendemos hoje, foi desconhecido dos antigos, mas que, com o cristianismo, fez-se regra de boa conduta no Ocidente.

A origem da palavra é latina. Humus tem a ver com a terra, e dá origem a homo (daí “humanidade”), que é o homem, ou seja, aquele que veio da terra, e também origina a humildade, a característica daquele que vive na terra, que tem os pés na terra – ou seja, que não é do mar ou do ar ou das árvores. O que tem os pés no chão e não se eleva e, assim, se mantém em sua origem de ser o que é, é, portanto, o humilde. Humilhar-se perante o divino, assim, na tradição antiga, é manter-se como um ser da terra ou, também, mostrar-se como aquilo que se é.




Nesse sentido é que dizemos que Sócrates jamais foi humilde. Ele ensinava a sofrosine, que é a prudência e a sabedoria, a capacidade de compreensão da própria capacidade. Isso nada tem a ver com a não-mudança. A sofrosine se opõe, no mundo grego, ao termo hybris, que é a auto-confiança exagerada, a presunção, o orgulho (meio tolo) vindo do desconhecimento de suas próprias limitações. Nesse sentido, os deuses sempre foram um parâmetro para que o homem pudesse refletir sobre os seus próprios poderes, sempre limitados, uma vez que eram mortais, não divinos. O caráter de Sócrates não era louvável por não mudar, mas por buscar mil faces, sempre se redefinindo. Aliás, suas perguntas visavam exatamente isso: saber-se de si. Ele deveria ver se o que era de seu conhecimento de si dizia mesmo algo correto, ou se deveria saber mais, e então avaliar se deveria mudar ou não. Quando se sabe, por exemplo, “o que é a coragem”, só então é possível para alguém se dizer corajoso – ou não!


De sofrosine para hybris há um fosso. Entre ser o que de fato se é, algo simples e da terra, no sentido latino de humildade, e o sentido de sofrosine, que é uma virtude grega, não raro rompida pela hybris ateniense de se achar mais capaz do que se é, há uma longa história de diferenças. A história das ideias é antes de tudo uma história semântica. Há uma história que fez da humildade algo próximo da graça e da caridade, e há uma história que fez da humildade a mera ideologia da humilhação, da submissão e da incapacidade para qualquer ação que não a reação de calar-se. Infelizmente, ambas possuem raízes iguais senão próximas.


Santo Agostinho pode ter tido um papel importante nessa balbúrdia da história semântica. Seu conceito de humildade não implicava na ideia de prostração diante do poderoso. Agostinho entendia que o exagero da auto-preservação, o exagero do amor-próprio, levaria o homem ao que é propriamente o pecado, o de fechar-se em si mesmo e, então, viver a sua vida cotidiana que é sempre uma vida de adoração do contingente, do perecível. Ora, o não-perene, o que muda, não é o verdadeiro. A noção de verdade neoplatônica de Agostinho é a noção do que não muda. Trata-se da visão tradicional de verdade, já anunciada formalmente por Aristóteles. “A árvore é verde” é um enunciado verdadeiro se a árvore é verde. Ora, se a arvore muda de cor o enunciado não mais dá conta da realidade, torna-se falso. A mudança da árvore, própria da vida no mundo, torna então os enunciados, a linguagem, uma constante mentira ou algo parecido. Que mundo é este em que a linguagem não pode dizer mais senão o falso? Um mundo de desentendimento total. Mas, enunciados que se refiram às coisas do Deus, tudo o que é perene, nunca serão falsos. As coisas de Deus, jamais afetadas pela mudança, nunca desmentirão os enunciados. Assim, estar na verdade e não no falso é estar com Deus. E manter o mundo do entendimento uma possibilidade concreta. Fazemos isso se abandonamos nosso amor pela restrição, pelo ficar no cotidiano e consequentemente efêmero. Conseguimos isso?


Infelizmente, ficamos cada dia mais no cotidiano quando temos sucesso e aplauso, quando nossa vontade começa a girar não em função de algo perene, mas em função de fazer coisas que nos tragam o tal do “ibope”. Receber o aplauso se torna um vício. Quanto mais se é aplaudido mais se quer receber aplausos. Assim, todos os imperadores romanos, mesmo os que fizeram boas coisas para o povo, foram tomados por Agostinho como buscadores do aplauso, do contingente, dos que fizeram sua vontade prisioneira do querer mais, querer o que é o mais contingente e efêmero e, portanto, o que mais possibilita o falso. Nesse sentido, todos foram grandes idólatras de si mesmos, idólatras do cotidiano e falso, portanto, pecadores.


Foi nesse trânsito agostiniano e essencialmente neoplatônico que a humildade tornou-se uma capacidade para a graça, ou seja, quem se mantém na sua simplicidade, na sua não-requisição do aplauso, pode gastar seu tempo em coisas mais perenes, pode libertar sua vontade no sentido do que não muda e, portanto, no sentido de Deus. Uma pessoa assim de descompromete da hecatombe da proliferação dos enunciados falsos. Retirar-se do mundo para pensar (epoché), virtude do filósofo, se associa aí ao retirar-se do mundo para orar, virtude do religioso. Um mundo que acolhe pessoas que o idolatram como mundo é um lugar de pessoas que não conhecem a perenidade dos conceitos e a perenidade de Deus. É um mundo sem Platão e sem Jesus. Ora, um mundo sem Platão é um mundo no qual o Jesus de Agostinho não cabe. Não se pode sair por aí construindo coisas para o povo, coisas boas, para inaugurá-las e ganhar aplauso. Pois o clamor do povo é o que há de mais efêmero – viver em função do efêmero é viver de enunciados que serão desmentidos em seguida. Viver em função disso é viver na falsidade e na mentira. E pior, é fazer da vontade uma escrava desse prazer. O prazer do aplauso, aliás, é similar ao prazer do sexo. 

Confirmamos isso quando perguntamos após o sexo o célebre “foi bom para você?” Se existisse no sexo algo de perene, não faríamos essa pergunta. Agostinho conhecia bem a alma humana, inclusive e principalmente a alma do garanhão – sua própria alma.

Pensando assim, talvez a única forma de redenção de Jesus devesse ser a Cruz, como de fato foi. Talvez Jesus só tenha se redimido mesmo quando, uma vez na cruz, não conseguiu atender com milagre ao ladrão que pediu que ele os libertasse. Só nessa hora Jesus abaixou a cabeça para Deus, confiando Nele uma salvação, ou seja, voltando a ser alguém do humus, da terra. Mas, até nesse momento, corre aí uma fala de soberba; antes, dizendo que os que o atacavam nada sabiam, e depois, dizendo ao ladrão que acreditou nele que logo este estaria no reino dos Céus. A fama de milagreiro, que perseguiu Jesus e que ele incentivou, sempre foi um elemento tentador no cristianismo. Essa fama nunca deixou a humildade em paz.


Não à toa, os papas pelejam em orações e orações, pois ao mesmo tempo em que se veem empurrados para grandes desafios políticos, que pode encantá-los porque quando feitos são verdadeiros milagres, devem também não se deixar levar pelo aplauso ou pelo gosto que empurra a vontade para mais e mais política. A vida cristã de humildade de Francisco I é muito mais difícil do que a de qualquer outro Papa, especialmente do seu antecessor vivo. Fazer o bem contingente sem se perder no feito e manter-se voltado para o bem perene, Deus, isto sim é romper com o pecado. Nesse sentido, a graça exige disciplina. O ascetismo pode muito bem não ser algo da religião, mas seja como for, é ele que pode permitir ao filósofo a ida “lugar nenhum” do pensamento e permitir ao Papa a santidade de estar com a vontade dirigida ao perene, a Deus.


A similaridade acaba aí: o “lugar nenhum” do pensamento nada tem de sereno, é um vendaval, pois os conceitos, ao contrário do que Platão pensou, não são perenes, eles se constroem e rapidamente se destroem – é nisso que o pensamento é sempre perigoso, um crime. Agora, o lugar de Deus é sim, o lugar perene, nessa hora o religioso encontra a paz que o filósofo jamais terá.



Por: Paulo Ghiraldelli 58, filósofo.
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