Muitos termos empregados livremente pelo senso comum possuem uma origem acadêmica, ou seja, são conceitos desenvolvidos dentro de disciplinas formais a partir de uma perspectiva “científica”. Por essa mesma razão, esses conceitos possuem delimitações muito claras quanto ao seu emprego e significado. Alguns dos conceitos psicológicos mais utilizados vulgarmente são os de Arquétipo, Símbolo e Mito. Símbolo e Mito são conceitos empregados em várias disciplinas acadêmicas como Antropologia, Filosofia, História, Sociologia, etc.
Na Psicologia os conceitos de Símbolo e Mito recebem determinações e explicações diferentes em função da abordagem teórica. Mas, em geral, o uso (muitas vezes indevido e deturpado) que se faz desses conceitos no senso comum, deriva das interpretações dadas pela Psicologia. Em particular, essa apropriação pelo senso comum das interpretações psicológicas dos conceitos de Símbolo e Mito, quase sempre remetem à Psicologia Analítica criada pelo psiquiatra suiço Carl Gustav Jung (1875-1961). Isso se dá em especial, pelo fato dos conceitos de Símbolo e Mitoestarem na maioria das vezes associados ao de Arquétipo, esse sim criado pelo próprio Jung. Tais conceitos são tomados como recurso auxiliar de explicação da experiência subjetiva humana nas mais diversas formas, mas poucas vezes atribuem-lhes o sentido original em que foram concebidos por Jung.
Então para que possamos entender do que tratam esses conceitos numa perspectiva junguiana, é bom partirmos do raciocínio que permitiu a elaboração dos mesmos.
Começando pelo Arquétipo. Imagine-se como um(a) integrante de um dos primeiros grupos de humanos sobre a Terra: 70% do que você come, do que te mantém vivo, inclusive a água vem da terra, a coleta de raízes e frutos vem especialmente das florestas. Quanto aos outros 30% da sua alimentação que é a caça, também vem indiretamente da terra. Todos os animais precisam de água, além do que, os animais carnívoros se alimentam em grande parte de animais herbívoros que se alimentam de vegetais (como nós dos bois e os leões dos cervos). Além do alimento os animais também podem te conferir abrigo e aquecimento através de suas peles. Os animais também podem te oferecer adornos e enfeites por meio de suas penas, chifres e ossos e com isso você pode se tornar mais atraente e garantir a conquista de parceiros e a reprodução/sobrevivência da espécie humana. Logo, podemos ver que o ciclo da vida está intimamente ligado a terra.
Agora, imagine que uma mulher do seu grupo pré-histórico deu a luz! Bom, para começar o nascimento da criança foi anunciado pela água (o estouro da bolsa), ao nascer a criança é alimentada no seio da própria mãe, cujo corpo também mantém a criança aquecida. Ora, você pensa: “a mulher é tal e qual a terra, ela dá a vida. A mulher provê alimento, água, aquecimento e proteção para seu filho, da mesma forma que a terra faz conosco”. A associação é imediata e faz todo sentido, não é mesmo?! Pois bem, aqui temos configurado o Arquétipo da Mãe!! Ou seja: a idéia/imagem/vivencia/experiência de que há uma fonte nutridora e protetora que nos garante a vida é representada por esse Arquétipo.
Tudo o que se relacionar a vida, seu surgimento e recursos para sua manutenção, se encontrará representado por imagens representativas desse Arquétipo. Sendo assim: a Floresta, a Água, a Terra, a Mulher em idade reprodutiva, grávida e em aleitamento e tudo o mais que você possa usar para expressar a idéia de Terra-vida serãoSímbolos do Arquétipo da Mãe. Nesse sentido os Arquétipos seriam a matéria-prima psíquica e afetiva através da qual nossos antepassados atribuíram significado à experiência humana de interação com o mundo, experiência essa cujas raízes remetem a condição biológica da própria espécie. O Arquétipo então, seria a matriz, a fonte, que coordena a formação dos elementos que estruturam a nossa psiquê, osSímbolos.
Dessa forma, o Símbolo não é uma criação literária ou uma invenção pessoal, mas uma propriedade subjetiva da condição humana e todo pensamento e toda ação consciente que temos, seria uma conseqüência do processo inconsciente de simbolização de um evento vivido. Por essa razão o Símbolo é o veículo de comunicação entre a psique individual e o inconsciente coletivo – entre o inconsciente e o consciente – aonde os Arquétipos ganham forma.
Bom, mas ai você e o seu grupo pré-histórico ainda não conhecem a escrita, não há como vocês registrarem essa grande descoberta que vocês fizeram sobre a ligação entre a Terra, a Mulher e a Vida. E embora essa experiência esteja simbolizada ao nível do inconsciente, vocês não têm consciência disso. Em especial, porquê é característica do Símbolo que sua vivência se expresse por meio de um pressentimento, um sentimento, um sentido, algo afetivo que nos revela um significado que antes era desconhecido. É o símbolo que nos orienta para conteúdos psíquicos desconhecidos, levando-nos assim ao encontro dos Arquétipos que habitam no inconsciente.
Então o que vocês fazem para assegurar que esse conhecimento do mundo e da vida seja transmitido aos seus descendentes? Vocês contam estórias!
Para quem não conhece a Biologia e os mecanismos genéticos de reprodução, a vida pode ser vista unicamente como um acontecimento mágico e divino. Logo, esse acontecimento mágico é com certeza presidido por uma Deusa e por um Deus – assim como o nosso nascimento é presidido pelo encontro entre um macho e uma fêmea. Com esse conhecimento adquirido, as estórias do seu grupo pré-histórico vão ganhando um colorido todo especial, elas se desenvolvem a partir da percepção da presença divina em suas vidas – ou seja, da presença de algo que transcende a capacidade humana de explicar os fenômenos vivenciados pelo grupo. Então, as histórias contadas por você e seu grupo são estórias da vida dos deuses, mais do que isso, são estórias que falam da presença dos deuses e do mundo sobrenatural em nossas vidas, essas estórias são os Mitos.
Os Mitos são relatos expressivos de tempos imemoriais, de acontecimentos, vivências e fenômenos cuja origem se perde na memória da humanidade.
Com sua narrativa simbólica os Mitos contam estórias de um tempo em que não havia História, um tempo em que a experiência humana não podia ser registrada pela escrita ou pela fotografia. O tempo histórico do Mito é o tempo da luta humana para fixar-se como espécie sobre a face da terra e por isso mesmo um tempo heróico e fabuloso em que as forças da natureza ora eram vistas como ameaças devastadoras, ora eram vistas como recursos essenciais à sobrevivência do ser humano. Essas forças indomáveis do mundo natural tinham para nossos ancestrais a invencibilidade do sobrenatural, ou seja, daquilo que se sobrepõe à própria natureza e que é maior e melhor do que ela e, por isso mesmo, a única coisa capaz de gerá-la e expressá-la: os deuses.
O impulso de nossos ancestrais para criar Mitos, é a ação na qual todas as relações entre o ser humano e o mundo ganham sentido e assim o que antes não tinha significado passa a ter.
Segundo Jung, os Arquétipos: “não são idéias herdadas, mas possibilidades herdadas”. Sendo assim, os Arquétipos não seriam determinados quanto ao seu conteúdo mas apenas quanto à sua forma. Logo, já que o Mito é mais que apenas uma recordação ancestral de situações naturais e culturais, ou uma elaboração fantasiosa sobre fatos reais, eles seriam uma expressão simbólica dos sentimentos e atitudes inconscientes de um povo. E a medida que a humanidade vai passando por novas experiências, adquire novos conhecimentos e novas habilidades, os Mitos se transformam e novos Símbolos passam a exprimir as imagens contidas no Arquétipoprimordial. Com o advento da agricultura, por exemplo, os grupos humanos descobriram que era possível “manipular” a terra, tratá-la e cuidar de forma que ela nos respondesse com mais e mais frutos. Mitos como o de Deméter, uma das principais representações do Arquétipo da Mãe, são típicos de uma sociedade agrícola.
Outros Mitos representativos da Mãe, como Hécate por exemplo, falam de um outro aspecto da descoberta da possibilidade de “manipulação” da terra que é a Magia. Em sociedades primitivas como a dos Bosquímanos do Kalahari na África, que são sociedades essencialmente de coletores-caçadores, a Magia não tem a força que tem nas sociedades agrícolas. Ora, a agricultura traz em si a idéia de que é possível “negociar” com a Terra (Deusa-Mãe), pela obtenção de seus frutos, é possível agradá-la! E o que é a Magia, se não uma “negociação” com os deuses para obtermos os seus frutos.
Os antigos gregos invocavam Afrodite – oferecendo-lhe os elementos por ela presididos – a rosa e o perfume (a semelhança dos ritos a Iemanjá afro-brasileira) – para dela obter beleza e amor. Invocava-se Ares oferecendo-lhe carneiros em sacrifício, para dele obter energia, iniciativa, coragem, etc., atributos desse deus. Nas comunidades agrícolas do interior de países cristãos como o Brasil, as moças casadoiras aprisionam a imagem do Santo Antônio para que ele lhes provenha um marido e garanta assim a própria libertação. Na aridez do sertão, procissões de flagelados pela sêca seguem carregando pesadas imagens santas e se comprometendo com novenas e missas para obter chuva. Nos templos neo-pentecostais das cidades brasileiras, multidões de fiéis bezuntam-se em óleos e purificam-se com fogo e sal grosso na crença de invocarem a proteção do espírito santo, enquanto deixam como oferenda seus salários e últimos trocados. A jovem estudante universitária adentra uma loja de produtos esotéricos e compra um incenso que, na visão dela, trará a harmonia dos elementais do ar ao ser aceso em sua casa…
…Do ponto de vista psicológico, todas as atitudes descritas acima pautam-se no pensamento mágico, cuja origem histórica nos remete a descoberta da agricultura pela humanidade e sua consequente descoberta de poder cuidar/agradar a terra (os deuses), e com ela poder negociar para garantir a própria sobrevivência. Os frutos que queremos dos deuses pode ser uma boa colheita ou mais intuição, proteção ou cura, um marido ou dinheiro, e para isso nos pomos a “agradá-los” e com isso tentamos “negociar”.
É importante que todos entendamos bem uma coisa: os antigos caçadores possuíam suas formas de reverenciar divindades, mas quando se fala na associação entre Magia e sociedade agrícola, estamos falando da elaboração de rituais complexos, de estabelecer hierarquias de culto com figuras sacerdotais, etc., estamos falando da prática mágica como sistema de culto religioso ou similar. Isso é característico do período de surgimento das sociedades agrícolas e aparentemente está muito ligado à descoberta de que é possível “negociar” com a terra, que é a idéia básica do processo agrícola. As mudanças culturais e históricas mudam o perfil dos Mitos, de uma certa forma isso é um processo inconsciente que ocorre para que possamos continuar acessando o Arquétipo no nosso imaginário de forma a permitir que símbolos antes desconhecidos continuem a dar significado às experiências vividas e a ordenar o conteúdo de nossa psiquê.
Através do Mito trazemos a divindade para junto de nós, simbolizamos a força desafiadora da natureza representada pelos deuses em estórias nas quais a estabilidade do universo está atrelada à própria origem e manutenção da vida. Por meio dos Mitos percorremos o caminho simbólico que nos dá acesso ao conteúdo arquetípico em nossa psiquê e que expressa os anseios humanos de transcender os desafios da sobrevivência cotidiana que são da ordem da natureza/biologia. Adentrar o plano sobrenatural – esse espaço simbólico que suplanta a invencibilidade das necessidades impostas ao homem pelo mundo natural/biológico – é aproximar-se do divino, é partilhar com os deuses de sua capacidade criadora que não apenas desafia as forças da natureza como é sua própria fonte geradora.
Quando um ser humano realiza um grande feito, quando ele se iguala aos deuses, é porquê ele superou as adversidades de sua própria condição humana ao enfrentá-las bravamente, e quando isso acontece ele se torna uma Lenda! Se o Mito é a narrativa simbólica de como os deuses atuam no mundo e dão origem a toda vida a partir de sua própria gênese; a Lenda (e também os Contos de Fadas), narra os caminhos percorridos pelo humano para superar sua condição de origem animal e assemelhar-se ao divino.
Tanto o Mito quanto a Lenda oferecem recursos simbólicos de acesso a psiquê mais profunda (Inconsciente Coletivo) e ao mundo arquetípico. A Lenda porquê nos lembra de nossa condição animal (biológica/mortal/limitada), e do papel dos instintos nas nossas relações com a natureza. O Mito por não nos deixar esquecer de nossa capacidade criativa que dá significado ao mundo e celebra o que há de divino em nós.Mito e Lenda, tanto um quanto a outra nos colocam em contato com os conteúdos do Inconsciente Coletivo, o espaço imaginário em que os Símbolos ganham vida pela soma dos instintos biológicos e de seus correlatos psicológicos, os Arquétipos.
Por: Angelita Viana Corrêa Scárdua